Reconstruindo Caminhos

Reconstruindo Caminhos
Escrevo porque chove saudades no terreno das minhas lembranças e na escrita eu deságuo as minhas urgências, curo velhas feridas e engano o relógio das horas trazendo o passado para brincar de aqui e agora... Costumo dizer que no calçadão da minha memória há sempre uma saudade de prontidão à espreita de que a linguagem da emoção faça barulho dentro de mim e que, nessa hora, o sal das minhas lágrimas aumente o brilho do meu olhar e uma inquietação ponha em desalinho o baú de onde emergem as minhas lembranças, para que eu possa, finalmente, render-me à folha de papel em branco...

outubro 20, 2019

Uma Carta para Mel


Querida Mel,

Há sete anos você chegou a minha casa com ares de ventania. 
Vinha da Região Centro-Oeste do País. A cidade de Rio Verde foi o seu primeiro lar. 
Ao vê-la pela primeira vez, na casa do meu filho Gilberto, senti pânico, medo e uma sensação de morte iminente. 
Diante de mim estava uma cadela da raça Pit-Bull. Raça que, durante uma certa época, foi notícia nos Jornais e TV´s, principalmente, em manchetes sangrentas. Tanto, que alguns desavisados, em sua sanha, já se alvoroçavam propondo a sua extinção. Quanta ignorância! 
Mas, o tempo, senhor da razão, desceu um manto de silêncio sobre o assunto, quando ficou provado que eram os criadores, os responsáveis pela ferocidade dos seus cães e, assim, você pode viver tranquila por quase onze anos. 
Pois bem, hoje, senti vontade de escrever só para lhe dizer que apesar de termos chegado ao século XXI acumulando conhecimento, experiências e descobertas, em vários campos de atividades, sabemos muito pouco sobre o amor e os afetos. 
Por isso, esta carta. Quero lhe falar de amor, de saudade e gratidão, mesmo que seja difícil, nesse instante, encontrar o caminho das palavras. 

Faz oito dias que você foi sacrificada. O câncer atingiu os seus órgãos vitais e a morte tornou-se urgência diante dos uivos de tristeza e dor que emitia.
Naquelas horas, eu rezava e pedia a Deus que não a deixasse sofrer. 
Mal começava o dia e eu administrava os remédios, em horários regulares, para minimizar as dores e adiar a sua partida.
Foram três semanas de intenso sofrimento: meu e seu. 
Transferi as minhas roupas e a TV para o quarto de hóspede e fiz vigília por todo o tempo em que durou a sua agonia. 
Deitei no chão para ficar mais próxima de você e rezei, enquanto alisava a sua cabecinha. 
Falei da minha gratidão por ter sido escolhida, entre tantos, para ser sua companhia constante, relembrei nossos melhores momentos e cantei para embalar o seu sono. Naquele momento, ouvi pela última vez algo que sempre me surpreendeu: você suspirar ao som de sua música preferida: “Nessa Rua tem um Bosque”, tocada por Heitor Villa-Lobos. 
Mas, aos poucos, você foi dando sinais de que ia me deixar.
Os uivos de tristeza e dor, antes esporádicos, tornaram-se mais frequentes. 
A cena do café da manhã que antes tomávamos juntas - você sempre arranjava um jeito de deitar a cabeça em minha perna, enquanto eu tomava a primeira refeição do dia – foi substituída por uma distância de poucos metros, o suficiente para que eu visse o seu olhar carregado de promessas, dizendo-me: - sossegue, eu ainda estou aqui! 
As subidas aos degraus da escada que levam ao meu quarto, tornaram-se um tormento para mim. Eu subia e ao olhar para trás, via os seus olhos tristes, sem vida, querendo me acompanhar, em um esforço vão. 
Foram duas tentativas e você rolou escada abaixo a partir do quarto degrau. 
As suas patas, antes tão ágeis, ficaram inertes. 
Os dias foram passando e os seus uivos de dor feriam mais e mais os meus ouvidos e o meu coração.
Quando me pediram para autorizar a sua partida e acabar com o seu sofrimento, eu relutei. Não por egoísmo, mas por alimentar, ainda, a esperança que habitava em seus olhos e nos meus. 
Afinal, a sua saúde oscilava. Senti-me devastada! Queria a lâmpada de Aladim, o único pedido. Mas, isso me foi negado! 

Então, quanto o dia quatro de outubro acordou e se fez poente, eu me dei por vencida e chamei o veterinário, que colocou você para dormir sob a sombra da roseira do nosso jardim. 
Ah, Mel, no mergulho final no sono do esquecimento eu fui covarde! 
Fugi! Fugi para bem longe! Deixei você na companhia de Gilberto, de Alana e dos amigos que iam chegando.
Não queria dizer adeus, embora desejasse com todas as minhas forças embalar o seu último suspiro, como fiz tantas vezes, ao som da música “nessa rua tem um bosque”. 
Não tive coragem e, agora, estou aqui, escrevendo sobre o amor, a saudade e a gratidão, em um exercício de despedida. 
Escrevo, enquanto escuto o murmúrio das ondas do mar, longe do jardim e de você. Compartilho as nossas memórias, para que a vida não me doa tanto. Você foi o amor mais puro e incondicional que eu conheci. Obrigada, Mel!

setembro 22, 2019

Uma Carta para Águeda Magalhães













Querida Águeda,

Quando eu recebi o livro “Alquimia do Voo”, pelas mãos de sua filha Aline, estava de partida para uma breve viagem. Pés no mundo, todos os dias, procurava um espaço de tempo para iniciar a leitura, mas só encontrava o desconforto do barulho, essa ausência de silêncio tão necessário, para quem tinha em mãos o seu primeiro livro de poesia. Comecei, então, a ler sem pressa, com respeito e admiração como se estivesse diante de uma relíquia. Amo livros! Gosto do cheiro e de manuseá-lo com cuidado e atenção. Voltei às páginas por várias vezes, algumas, porque as lágrimas toldaram-me a visão, outras, quando o arrepio em minha pele pedia um pouco mais de calma... de alma. Queria garimpar/guardar suas letras e signos em uma caixinha de veludo vermelho, daquelas que nos enchiam os olhos de alegria e contentamento porque, dentro, havia um presente inesquecível! Iniciei a leitura, pouco a pouco, queria reter na memória a beleza que habita os seus versos, a sua alma. Pois bem, hoje, eu fui consultar o Aurélio. Um desejo imenso de encontrar palavras caramelos que pudessem falar da admiração e respeito que eu tenho pela sua obra, mas nada cabia na janela do meu olhar: você ultrapassa o dicionário em beleza, doçura e sensibilidade. Você é rara, minha querida! Gostaria de ter a competência e o conhecimento para escrever sobre Alquimia do Voo, como fizeram Ivy Menon e Lia Sena, mas não os tenho. No entanto, posso afirmar que os seus versos acordaram a minha alma, antes tão desértica e blindada. Parabéns, Águeda! Por ter os dedos cheios de poesia, mesmo quando a vida sangra. Desejo ressaltar que o prazer da leitura abafou qualquer ruído, pois, lendo você, eu escutei o silêncio das suas dores, o seu grito por vida, liberdade e amor. Obrigada, por você existir. O mundo sem você seria mais triste!



fevereiro 26, 2019

O Voo de Gibinha












Quando eu era criança ouvi a minha mãe dizer: “ filha, quando você receber um regalo não desfaça o embrulho de imediato. Primeiro, contenha a sua ansiedade, observe o cartão que vem junto, abra-o, só após ler o conteúdo, agradeça. É feio desfazer a fita antes de ler o que está escrito, pois as palavras têm significados maiores que o próprio mimo.” E eu ficava a matutar sobre aquilo que ouvira. Hoje, constato que tantas décadas se passaram, mas as palavras da minha mãe continuam provocando-me o mesmo estranhamento. Faltam poucas semanas para eu receber o maior e mais importante de todos os presentes: o seu pouso em minha vida. Então, pergunto-me: como posso agradecer por algo que os meus olhos não viram? Como ler um cartão que ainda não me foi entregue? Por enquanto, apesar da estranheza, procuro nas palavras a justificativa para o meu espanto. Daí em diante, sou só gratidão!

Gibinha, há quase 37 semanas recebi o anúncio do seu voo. Confesso que fui surpreendida pela notícia. Não esperava por ela tão cedo e os motivos pelos quais eu reafirmei a minha surpresa, não pareceram tão óbvios... Nada a ver com a passagem do tempo, a idade, o envelhecimento, tampouco com a carga de significação, que a notícia sempre trouxe para boa parte das mulheres. Não estava preparada para ser avó. Como assim, eu avó? Ninguém me perguntou se eu queria! Passei dias, semanas, meses para me acostumar à ideia de que você iria entrar em minha vida e sem permissão invadiria as minhas horas tornando as minhas noites insones. Acabou-se o meu sossego, pensei. Logo agora, com a vida estabilizada, os filhos criados, independentes e os dias livres para organizar o tempo como bem me prover. Recorri às lembranças do passado. Uma lista de motivos intermináveis justificou os meus pensamentos... Vai começar tudo, de novo!? Longas noites de vigília a espantar preocupações quanto ao seu futuro, ao seu caráter e a sua maneira de viver. Nenhuma certeza de que o investimento em horas de amor, carinho, renúncia, dedicação fariam de você um homem íntegro, ético, valoroso. Um ser humano melhor, comprometido com as causas sociais, lutando por um mundo mais justo e igualitário. Não há garantia sobre isso. Nenhuma certeza de que as longas horas a olhar para o relógio - depois de você ganhar às ruas, o trariam de volta ileso para os meus braços. Nenhuma certeza, aviso ou premonição de que novos tempos serão sem injustiças, nem violências para minimizar as minhas dores e angustias!? Apenas, inquietações acelerando o ritmo cardíaco, quando um filme em retrocesso passa diante dos meus olhos em momentos de incertezas. Eu já vivi isso, penso. Por isso, passado o espanto inicial e ainda sem ter desfeito a fita que amarra o novo presente, como minha mãe recomendou-, debruço-me nesse momento sobre as teclas do computador a catar letras que retirem as impurezas dos meus pensamentos e abro as minhas asas para dar-lhe proteção e boas-vindas. Faltam poucos dias para eu ganhar o presente, mas quem vai ler o cartão dessa vez é você. Que nas asas do seu voo lhe acompanhem a saúde, a generosidade, a compreensão e a alegria de viver no amor. E, também, o compromisso de fazer aos outros aquilo que gostaria que fizessem a você. Seja bem-vindo, Gibinha!​


Crédito de Imagem: Armindo Alves. Um amigo com poesia no olhar. Um cronista visual.

janeiro 26, 2019

Consciência - Uma Sentinela para a Paz

Bombeiros carregam corpo resgatado em Brumadinho — Foto: Douglas Magno / AFP


















Mal o dia nasceu e lá fora a chuva cai intermitente trazendo 
desconforto a minha alma. Dentro de casa, a televisão ligada põe em desalinho os meus olhos diante das notícias de Brumadinho-MG, sobre a queda da barragem. Muitos mortos, desaparecidos, famílias inteiras perplexas, sem-teto, sem notícias, sem rumo, sem esperança. Tento resgatar a paz de espírito, no entanto, mergulho cada vez mais no avesso dos pensamentos e, estupefata, constato que a imobilidade, a inércia, o egoísmo, a omissão fizeram morada no meu espírito desviando a atenção para uma zona de conforto, há muito desejada: existe um culpado e, este, não sou eu! Pronto, já posso fechar a cortina dos olhos, dormir o sono dos justos. Não! O ruído das horas, os holofotes da memória, a consciência – essa sentinela para a paz - vigilantes, anunciam o resgate da minha alma que, em confissão, reconhece a sua parcela de culpa e pede perdão! Perdão pelas palavras de indignação abortadas em praça pública, pelo silêncio obsequioso quando o clamor das minorias pedia aderência, pela embriaguez do conforto e da sedução do poder. Perdão pela covardia, pela subserviência. Por ter me omitido, quando se fazia necessário subir ao palanque, pegar as armas do pensamento, das ideias, das palavras e discursar sobre cidadania, direitos humanos. Perdão por ter ficado em cima do muro, pelo conforto das contas pagas, do emprego garantido nas coxias do poder, das viagens, do caviar e do espocar do champanhe, quando o reles chão da Pátria Amada é a morada da maioria dos sem-teto, sem destino e sem esperança. Perdão pela omissão e covardia que colocaram os meus irmãos de Brumadinho-MG, no exílio, para uma pátria  de onde não tem volta. 



Crédito de Imagem: Douglas Magno/AFP - G1

janeiro 22, 2019

Um Amor para Poucos







Sou assumidamente romântica e sonhadora. Olho para estas cadeiras vazias e elas me reportam a emoções do passado, quando amar era um olhar sem pressa para outro, um desejo imensurável de que aquele encontro durasse para sempre. Naquela época, ouvir Vinícius de Moraes declamar em seu Poema Soneto de Fidelidade: “que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”, era um desafio e uma agressão àquele sentimento urdido na alma, com os fios do encantamento e da esperança. Era um balde de água fria nos sonhos de quem esperava por um porvir risonho, ao lado de um amor que fosse travessia para felicidade. E, a felicidade era sinônimo de morar nos olhos do outro, sem despedidas. 


Hoje, aos sessenta e oito anos de idade, sou a mesma garota romântica e sonhadora, que se debruça sobre uma imagem e, no território livre da imaginação, faz a leitura de momentos felizes e do amor eterno. Os meus olhos, apesar dos anos e dessa “modernidade líquida”, passeiam pelas folhas do calendário e se desconcertam com qualquer tentativa de mudar a narrativa dos meus sonhos. Quem habitou em mim, me fez conhecer tempos de absoluta leveza, cantou o seu amor em versos e em prosas, me apresentou a ele de maneira doce, terna e ao mesmo tempo arrebatadora, vai ficar em meu corpo feito tatuagem, mesmo que, na dança discreta das horas, nem sempre tenhamos vivido a coreografia perfeita das nossas fantasias e, que o relógio das horas já tenha saqueado o nosso futuro. Quem me encantou, vai continuar me encantando sempre. É um amor que não acaba nunca. Porém, alguma coisa mudou com a soma dos meus dias. Agora, olho para estas cadeiras vazias e compreendo que o amor eterno é para poucos, só sobrevive quando rasgamos o véu da ilusão, lembrando-nos de que, na dança festiva dos dias, nem tudo é um mar de rosas... E ainda assim, permanecemos! Mas, entendo da mesma forma, que o sentimento cantado em versos e em prosas, pelo Vinícius de Moraes, em seu “Soneto de Fidelidade”, também é amor, porque amar é um exercício cotidiano de resistência, mesmo quando não dura.


Crédito de Imagem: Giovanna RMD L Avelar