Ele aparentava ser um homem feliz. Era uma dessas poucas pessoas em quem as marcas e os infortúnios da vida não conseguiram produzir ranhuras. A sua pele tinha o frescor da juventude e o seu coração batia com ardor, quando subia todos os degraus daquele prédio de luxo, à beira-mar, para o recolhimento do lixo. Morava no interior do sertão nordestino, mas viera à cidade grande em busca de dias melhores. Queria trabalhar e estudar. Ser Doutor! Tudo o que conseguiu foi uma vaga de catador de lixo. Cotidianamente teria que percorrer todos os andares daquele majestoso edifício, para recolher os detritos oriundos das mesas fartas e dos lautos banquetes, que vez ou outra, a esquina dos seus olhos conseguia enxergar. Tempos sofridos! Dia após dia o seu corpo doía de tanta falta. Falta, principalmente, da família e dos afetos abandonados naquela região longínqua, onde o seu jovem coração ficou sepultado para sempre. Todo o fim de mês tinha contas a pagar e escolhas a fazer. As poucas moedas que provocavam barulho no bolso da sua calça puída, pareciam lembrá-lo da sua triste condição: era mais um brasileiro, um nordestino a sonhar com esperanças vãs. Alguns meses se passaram, mas a realidade daquele jovem aprendiz não mudou. No entanto, ele continuou trabalhando com obstinação. Havia costurado no corpo uma vontade férrea de seguir adiante e uma resiliência de causar inveja a qualquer um. Nada o demovia do seu objetivo de ser Doutor.
Certa vez ao executar o seu trabalho encontrou entre os sacos de lixos recolhidos, uma pequena fortuna: livros! A partir daí a sua vida transformou-se. As horas de saudade e solidão foram sendo substituídas pela leitura e no brilho do seu olhar começou a chover arco-íris! Tudo era beleza e vida naquela sopa de letras que encantavam os seus olhos. Até a falta da família e dos afetos, deixados em terras distantes, ficaram como um borrão esquecido em sua memória. Com a passagem do tempo foi promovido a porteiro e as horas de leitura ficaram maiores, apesar da imensa responsabilidade de vigiar o entra e sai daquele prédio. Durante o dia o serviço exigia mais atenção, porém a noite, com as suas horas arrastadas, passou a ser curta diante da avidez e da fome de conhecimento daquele rapaz. Nos meses seguintes à promoção ele devorou livros, muitos livros. Todos os que lhe caiam em mãos. Tinha fome de palavras! Gastava as horas lendo, lendo. Até que um belo dia ele conheceu a professora. Uma jovem residente do edifício onde ele trabalhava e que tinha por hábito sentar-se à beira-mar para ler e contemplar o pôr do sol. Tímido, mal a cumprimentava, embora tivesse em seu coração o desejo de trocar algumas ideias com aquela que era considerada por ele a fada madrinha, o norte, a mão estendida, a ponte pela qual ele teria que atravessar para chegar ao lugar do seu sonho: ser Doutor! Flertava com a possibilidade de arrancar-se daquele silêncio de palavras. Queria conversar com a Doutora, contar-lhe sobre o seu desejo e pedir-lhe orientação.
Por fim, essa hora chegara! Munido de coragem, com um largo sorriso e brilho nos olhos ele abordou a professora e falou-lhe dos livros que lera. Daí em diante o milagre da multiplicação das palavras ocorreu e uma bela amizade surgiu. Com ela mais livros, conversas, troca de ideias, sábias e serenas discussões. Então, o catador de detritos, agora promovido a porteiro, ensinou a professora que em um país onde cultura e educação estão sendo jogados em sacos de lixo, vale a máxima de que sonhar e resistir é preciso. Encarcerar esperanças, jamais! Pois, como ele sempre repete: tiram-me o direito à saúde, à cultura e à educação, mas o conhecimento é patrimônio meu. E é com ele que eu vou mudar o destino do meu país! Quem viver, verá!
Um comentário:
Que linda e comovente história de vida. E pensar que aqui no Brasil livros são desprezados por governantes... Que feio, que baixaria essa por aqui! beijos, chica
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