Reconstruindo Caminhos

Reconstruindo Caminhos
Escrevo porque chove saudades no terreno das minhas lembranças e na escrita eu deságuo as minhas urgências, curo velhas feridas e engano o relógio das horas trazendo o passado para brincar de aqui e agora... Costumo dizer que no calçadão da minha memória há sempre uma saudade de prontidão à espreita de que a linguagem da emoção faça barulho dentro de mim e que, nessa hora, o sal das minhas lágrimas aumente o brilho do meu olhar e uma inquietação ponha em desalinho o baú de onde emergem as minhas lembranças, para que eu possa, finalmente, render-me à folha de papel em branco...

maio 19, 2025

A Dor Silenciosa da Casa de Boneca

 








Dani,

As memórias felizes nos salvam, quando os sonhos de adulto não encontram abrigo e a realidade nua e crua bate à porta do nosso lar. A casa de boneca está vazia e uma dor silenciosa reclama a sua ausência.

Hoje, um dia após a sua partida, uma lembrança aflorou em meio a um turbilhão de pensamentos e eu me deparei com o silêncio de um quarto de hospital. Estava sozinha! Nele, ainda sob o efeito da anestesia, eu olhava para o teto sem saber ao certo o que estava fazendo naquele lugar, quando uma enfermeira me comunica que vai trazer um bebê para eu alimentar. Sentei-me em uma poltrona e esperei. Momentos depois, ela entrava apressada, e colocava você em meus braços. Até aquele minuto, eu nunca havia pego um recém-nascido no colo, porque fui criada entre adultos, mas o instinto materno sabedor da importância daquele instante fez com que eu, desajeitadamente, tentasse ajustá-la ao meu seio para que você pudesse receber a sua primeira alimentação.

Naquele dia 06/ 08/1977, em meio ao arrepio da pele e das minhas lágrimas que caíam sobre o seu rosto, eu fiz uma prece: “Meu Deus, a partir de hoje, coloca sobre os meus ombros todo o sofrimento que vier para esta criança!”

Passaram-se décadas para que eu pudesse entender que a minha prece não fora atendida. E não foi por falta de merecimento nem seu, nem meu. Cada um de nós, ao nascer, independentemente, da cor, raça, religião, ideologia ou status social traz em si a fagulha divina, a presença de Deus tatuada em nosso coração e o mistério da Divindade correndo em nossas veias. Nascemos nus e voltamos nus em um corpo que aos poucos vai se transformando em cinzas. Faz parte do Plano Divino, porque em tudo há um propósito! Não nos cabe contestar.

Por isso, nesta manhã de domingo, quando a dor silenciosa da casa de boneca me visita, eu abro todas as portas que havia fechado quando fui velar e assistir à cremação do seu corpo no Cemitério do Parque das Acácias e deixo que o vazio e o silêncio me preencham para viver o luto da sua ausência. A casa de boneca (a qual você costumava chamar assim, por conta da organização e o cheirinho de lavanda no ar), hoje, está um caos: cadeira de rodas, cadeira de banho, cama hospitalar, litros de oxigênio, soros pendurados em suportes, caixas e mais caixas de medicamentos, agulhas, gases, algodão, prateleiras abarrotadas de lençóis, camisolas, toalhas, material de higiene, cremes e pomadas se espalham pelos cômodos... E o nosso perfume? Sim, digo nosso, porque nesta reta final (que durou quatro meses) eu, estrategicamente, escolhi o mesmo perfume para nós duas, para que a minha ausência, ainda que por breves momentos, não fosse sentida... Você estava em mim e eu em você.

E agora, como eu fico? A mesa está vazia, o quarto está vazio e a casa silenciosa. Em breve, a casa de boneca voltará a ser como que era antes. A cama e os medicamentos, entre outros objetos serão devolvidos. Mas, quem me devolverá você, senão as memórias felizes!?