Reconstruindo Caminhos

Reconstruindo Caminhos
Escrevo porque chove saudades no terreno das minhas lembranças e na escrita eu deságuo as minhas urgências, curo velhas feridas e engano o relógio das horas trazendo o passado para brincar de aqui e agora... Costumo dizer que no calçadão da minha memória há sempre uma saudade de prontidão à espreita de que a linguagem da emoção faça barulho dentro de mim e que, nessa hora, o sal das minhas lágrimas aumente o brilho do meu olhar e uma inquietação ponha em desalinho o baú de onde emergem as minhas lembranças, para que eu possa, finalmente, render-me à folha de papel em branco...

junho 06, 2022

Uma Carta para Nana Lins - O Perfume do Tempo

 


 









Quando os primeiros raios de sol do ano de 2022 tingiram a madrugada de luz e cores nenhuma viagem, presente, festa ou lembrança do tilintar das taças de champanhe cobriu o deserto, a dor, a solidão e o buraco existencial que alguns carregaram dentro do peito. O ano de 2021 desabrigou afetos, enlutou famílias e deixou histórias inacabadas. Estamos todos ressabiados e com muitos medos. Uns mais, outros menos. Todavia, a pulsão pela vida continua e, por esta razão, quando as águas deste mês de junho caem fertilizando o terreno das minhas lembranças eu volto a me habitar.

Neste momento, o perfume do tempo insiste em espalhar fragrâncias lembrando-me que há muita vida lá fora, enquanto construo grades aqui dentro. Por isso, decido rasgar o véu do silêncio e retomar a escrita. Desta vez, um texto íntimo para falar sobre a minha primogênita.

Quando o receio da sua morte, em julho de 2021, assolou as portas do meu coração, senti-me devastada. Em minhas mãos o diagnóstico Glioblastoma de IV grau (selvagem) prenunciava uma vida breve. Paralisei! Quis dar asas às palavras para que elas alçassem voos e me libertassem do medo, da dor e do sofrimento, mas foi tudo em vão. A casa de dentro desabou e eu vi cacos em volta de mim. Perdi a lucidez! Durante dias ruminei ideias fúnebres. Estava tudo desarrumado aqui dentro. Foi aí que lembrei de quem sou: mãe, um território sagrado! Um lugar de força, fortaleza e coragem... Um não sentir medo, dor, tristeza, ansiedade, tampouco demonstrar fraqueza.

Esta carta é para falar sobre você, “Nana Lins”, mas diz muito de mim como mãe, sinônimo de amor, fé, coragem e resiliência. Por isso, revolvo as gavetas do meu sítio de memórias e o perfume do tempo traz lembranças de nós duas, desde o ventre.

Há dias, você pediu para que eu comprasse um álbum onde coubesse mais de quinhentas fotos. Queria organizar as imagens dos seus afetos, dos amores e das viagens antes que elas se apagassem dentro do seu cérebro. Um exercício para a mente. No entanto, as suas fotos ultrapassavam a casa dos mil. Não consegui encontrar o tal álbum. Pois bem, a partir de agora eu também sou o seu santuário de memórias e passo a relatá-las aqui.

Nana Lins” nasceu em 06 de agosto de 1977, às 15h de um sábado mais que esperado. Foram cinco meses de ansiedade até que o teste de gravidez desse positivo. Foram nove meses tecendo sonhos e bordando fantasias sobre como seria o rosto e o sexo do meu primeiro bebê. Sonhava e desejava que fosse uma menina. Aí você chegou provocando sustos. Foi logo me levando para o balão de oxigênio e durante os anos seguintes continuou tirando o meu fôlego... Estreou na passarela da vida em grande estilo, como uma boa leonina, chamando a atenção para si mesma. Depois disso, nunca mais os seus dias passaram em branco. Nem os meus. Tudo era festa, presentes, luzes e cores, porém o trono, a coroa e o palco foram sempre seus. E eu que me “virasse nos trinta” para realizar todas as suas fantasias: festas de aniversário, festas de Natal (eu caracterizada de Mamãe Noel) árvores natalinas (algumas) enfeitadas de bombons e chocolates, festas da Páscoa (ovos de chocolates escondidos pela casa) decoração do quarto de dormir com direito a luzes de camarim, coleção de papéis de cartas, visitas à livraria de seu Bartolomeu, compras de brinquedos, principalmente, de bonecas Barbie e seus adereços, bicicleta, patins, etc. Teve também a época da dança, do curso de balé no Studio de Enock e depois em Stela Paula. E, as viagens?

No Brasil foram tantas, a começar por Pernambuco aonde fomos várias vezes atraídas pelo brilho das lojas do Shopping Center Recife. A princípio, quando você ainda era uma criança em busca de brinquedos e depois, na adolescência, desejando comprar roupas de marcas. A Loja Mercearia era uma das suas preferidas. De lá, voltávamos felizes e carregadas de presentes, já pensando na próxima viagem.

Então, você foi crescendo e as prioridades mudando. Pediu para sair do Colégio das Lourdinas, queria estudar no Colégio PHD, um lugar onde os gatinhos fervilhavam na hora da saída. Tempos de flores e de paquera! Fez novas amizades e conservou as antigas: Bia, Claudinha, Ana Cristina, Dani Quirino, Bela, Flavinha e Fábia. Amizades para a vida toda, baseadas no afeto, na solidariedade, na compreensão, na tolerância e na aceitação das diferenças.

No dia 14 de maio de 1992, Nana Lins dá um salto para a maturidade. A morte precoce de seu pai mudou não só a nossa estrutura familiar, como também, provou que em todas as perdas há um ganho. Amadurecemos todos física, emocional e economicamente... Depois do luto, a vida seguiu e os dias começaram a ficar ensolarados, até o sonho de ir a Disney tornou-se possível. A partir de então, festas, reuniões, mesas fartas e a garotada alegre faziam da nossa casa um ponto de encontro... Um lugar feliz! A turma do PHD, do Colégio das Lourdinas e da Cultura Inglesa estavam sempre presentes. E eu, além de mãe, virei fada madrinha. Você sonhava e a varinha mágica entrava em ação.

Lembra da festa surpresa dos seus dezoito anos? De dentro do bolo saiu uma passagem para a sua primeira viagem internacional, sozinha. Inglaterra era o destino. Neste país foi duas vezes: Uma para Londres e outra para Leeds. Na volta, comemorávamos com muitos abraços, alegria e mesa festiva. Ah! Nana, as histórias de viagens, festas, surpresas e comemorações foram tantas que preencheriam páginas e páginas em branco, porém não quero me alongar mais do que já o fiz, para não cansá-la. Vamos relembrar um passado mais recente.

Quando você passou no vestibular da UFPB inaugurou uma época de conquistas e prêmios. A licenciatura no curso de letras (Inglês) a levou para longe de nós. Faria o Mestrado e o Doutorado em Florianópolis, (Santa Catarina) e passaria onze meses morando em Leeds, na Inglaterra. Posteriormente, foi morar na Austrália por seis meses e, anos depois, passaria alguns meses na Argentina, em um Pós-Doutorado. O perfume do tempo incensou os seus dias. A essa altura você já havia passado em três concursos nas Universidades: UEPB, UFCG e, finalmente, na UFPB. Nesta, virou pesquisadora do CNPQ e inscreveu o seu nome no mundo acadêmico. Tornou-se Analista da Linguagem Verbal e Visual. Participou de bancas, de palestras, organizou um livro (com outros professores) e abriu um congresso no Chile. Neste universo acadêmico inscreveu o seu verdadeiro nome: Danielle Barbosa Lins de Almeida.

No entretanto, a vida, seus mistérios e o inesperado se fizeram presentes a partir do dia 22 de julho de 2021. O diagnóstico de um Glioblastoma de IV grau (selvagem) surgiu no momento mais feliz da sua vida. Em junho deste mesmo ano, você se inscreveu no concurso “Vozes de Cabedelo”, se descobriu cantora e adotou o nome de “Nana Lins”, uma justa homenagem a seu pai que a chamava de “Nana”. Conseguiu chegar a etapa semifinal e, apesar de não vencer o concurso, foi incentivada pela pianista Sandra Lemos a investir em aulas de canto.

Em 29 de julho de 2021 você foi operada. Dois dias antes da cirurgia, queimou vários diários onde escrevera relatos sobre viagens, vitórias, intimidades, dores e angustias. Encerrou as suas contas nas mídias sociais e fez um único pedido: - que a página “Nana Lins” no “Instagram” permanecesse aberta e alimentada. Nascia ali o desejo e o sonho de permanecer cantora, apesar das dificuldades do presente.

Pois bem, “Nana Lins”, a sua página continua aberta deste então e a sua voz continua se fazendo ouvir, embora ainda precise amadurecer com aulas de canto, muito estudo e determinação. De minha parte, como mãe e fada madrinha eu reafirmo o compromisso de cuidar de você e lhe colocar de pé, quiçá cantando em cima de um futuro palco, para que a sua luz continue brilhando. Hoje, somos só nós duas dentro do meu apartamento lutando pela sua vida, mas, lá fora, há muita gente boa, generosa, empática e solidária orando e intercedendo pela sua saúde. Faça jus a esse amor, não desista de lutar!