Reconstruindo Caminhos

Reconstruindo Caminhos
Escrevo porque chove saudades no terreno das minhas lembranças e na escrita eu deságuo as minhas urgências, curo velhas feridas e engano o relógio das horas trazendo o passado para brincar de aqui e agora... Costumo dizer que no calçadão da minha memória há sempre uma saudade de prontidão à espreita de que a linguagem da emoção faça barulho dentro de mim e que, nessa hora, o sal das minhas lágrimas aumente o brilho do meu olhar e uma inquietação ponha em desalinho o baú de onde emergem as minhas lembranças, para que eu possa, finalmente, render-me à folha de papel em branco...

agosto 25, 2023

A Vitrola

 














A precisão cirúrgica da agulha deslizando hoje sobre as ranhuras do vinil, acorda lembranças adormecidas no berço das saudades. É chegada a hora de revivê-las, pois como bem disse o Padre Fábio de Melo: “... as idades da vida são rios que nunca deixam de desaguar em nós”.

Em outubro de 2019, eu encaixotei alguns pertences e deixei a Casa do Brisamar. Havia poucas caixas. Uma delas, a mais valiosa, era depositária de um silêncio repleto de sons. Naquela embalagem de papelão estiveram armazenados todos os meus discos de vinil e a história musical da minha vida com seus ruídos de alegria, felicidade, dor, saudade, lágrimas e solidão.

Lembro-me, agora, porque as recordações foram arquivadas em um sítio de memórias cheio de sons, passos, cheiros, cores e lembranças. Todos elas falaram de uma pátria de intimidades. E é para este lugar sagrado, onde alberguei tantas saudades esquecidas, que eu volto, neste instante, com o olhar ainda úmido pela possibilidade de revisitar a casa de dentro.

Há pouco mais de um mês, uma ideia surgiu em minha cabeça: comprar uma vitrola. Naquela ocasião, lembrei-me que na década de cinquenta, numa data próxima ao dia das mães, o meu tio Chico Maria presenteara Mãe Júlia com uma Radiola. Era assim que chamávamos a vitrola naquela época.

A chegada daquele móvel nos causara emoção e alegria. Uma peça de mobília para fazer companhia ao piano e aos outros móveis na sala de visitas. Uma sala que fora previamente preparada para receber tão distinta companhia. Trago à memória, até hoje, os cheiros da cera Parquetina e do Óleo de Peroba que perfumaram aquele ambiente. Um espaço que aos poucos foi-se enchendo de sons e de histórias. O primeiro deles com a música “Mamãe”, uma composição de David Nasser. Canção que preencheu o lugar de emoção e lágrimas, e fez a estreia da nossa querida vitrola.

Quanta emoção sentimos, no momento em que os primeiros acordes se fizeram ouvir através daquele disco de vinil! Um objeto circular que usara palavras cantadas, para falar do amor de um filho por sua mãe. Este e outros objetos circulares fizeram parte do acervo do meu patrimônio musical. Foram anos colecionando memórias auditivas, até que o meu futuro ficasse prenhe de simbologias.

Por tudo isso, hoje, ao observar novamente a precisão cirúrgica da agulha deslizando sobre o vinil, eu rendo ruidosos aplausos a minha nova vitrola, aos meus novos discos e ergo um brinde às boas lembranças. Além disso, acendo o incenso da saudade para perfumar o ambiente e permito que “as idades da vida continuem a desaguar em mim.”

julho 18, 2023

O Amor é Construção

 











Amar é apagar da memória os nossos excessos e reeducar o olhar para deixar o tempo abrir-se em direção ao outro. Amar é virar a página e se reinventar. É adiar certezas para um tempo futuro, quando os nossos olhos inventarem caminhos por onde o medo nos faz resistir. Todavia, quantos de nós somos capazes de retirar as cercas que colocamos ao nosso redor, para nos proteger da ameaça que é o outro no exercício da convivência?

O título desta prosa é: O Amor é Construção. Pois bem, o que será que temos a dizer sobre isto?

- Diremos que temos um olhar de esperança e de amorosidade no início de qualquer tipo de relacionamento. Naquele instante, em que somos cordialmente convidados a edificar a casa do amor, temos o mundo em nossas mãos. Um mundo de promessas onde esperamos, ingenuamente, que a tristeza e a dor não sejam revisitadas.

Passado algum tempo, um olhar de impaciência acusa-nos de que o outro, agora, é um território estranho. Então, nos recolhemos e achamos por bem voltar à zona de conforto da nossa eterna solidão. Um lugar onde ninguém nos confronta, afronta ou obriga-nos a rever as nossas verdades pétreas. E, desse modo, a vida vai esmaecendo a tal ponto que os dias vão acordando tristes e sombrios.

O que será que mudou? De quem foi a culpa? Por que aquele amor que se derramava através da janela do nosso olhar, denunciando um brilho intenso e uma alegria incontida, de repente, esmaeceu?

- Nada mudou! O amor é uma arte, uma construção diária que flerta com a eternidade. Todos nós sonhamos que ele dure para sempre e, a despeito do que disse o poeta Vinícius de Moraes, em seu poema Soneto de Fidelidade: “que seja infinito, enquanto dure”, nós ainda esperamos, dia após dia, que o brilho dos nossos olhos nunca se apague.

- De quem foi a culpa pelo fim do relacionamento?

- De todos e de ninguém em especial! Quando o sentimento acaba, todos perdemos. Perdemos a melhor parte de nós mesmos, porque o amor agrega e reúne em um só lugar, no coração, as nossas melhores intenções. Quando amamos somos mais benevolentes, solidários, empáticos e dispostos a contribuir para um mundo melhor. O poder inquestionável do amor nos faz melhores!

Por que, então, passado algum tempo, temos este olhar de impaciência para com o outro e deixamos que os dias sigam tristes e sombrios?

- São tantas as variáveis! No entanto, ousaríamos dizer que a principal, talvez, seja o ego de quem se julga melhor, mais sábio ou maior do que os outros. Há pessoas que vêm ao mundo com o dedo em riste, travestidas de juízes da humanidade e cheias de certezas pétreas. A essas, não lhe interessam ouvir opiniões contrárias, nem argumentos que derrubem convicções armazenadas em seu HD pessoal. São adultos infantilizados, incapazes de manter um diálogo cordial, quando percebem que terão de rever alguns pensamentos, ideias e posicionamentos.

Em razão disso, se em algum momento tiverem que optar, vão preferir o deserto da solidão à riqueza e o aprendizado que existe na convivência com o outro. Pois, afinal, o amor é uma construção diária erguida sobre o altar das nossas convicções e cabe a nós darmos a ele a chance de nos reinventar.

maio 08, 2023

O Valor de um Sonho

 












Há dias eu acordei com esta sentença ecoando em minha cabeça:- A vida é, antes de tudo, explicação!

Não entendi, de imediato, o porquê das letras se fazerem inquilinas do meu cérebro, sem pagar aluguel e, ainda por cima, obrigarem-me, depois de desperta, a costurar acordos com a minha consciência a busca de uma explicação. Na sequência da frase acima, duas questões surgiram-me à mente.

- Você é feliz?

- Pagou o preço pelos seus sonhos?

Então, pensando sobre isso, eu fiz esta reflexão:

Durante boa parte da juventude, nós ignoramos as engrenagens que põem os ponteiros do relógio em funcionamento. Deambulamos pelas ruas e avenidas sem lenço e sem documento. A princípio, levadas pelo frescor dos primeiros anos, desconhecemos o valor das horas. Não temos pressa em ser felizes, nem passamos em revista o cotidiano porque acreditamos ter todo o tempo do mundo para fazê-lo. Nesta fase, as vozes da razão sempre silenciam quando o assunto é o tempo que urge.

Decorridas algumas décadas, fazemo-nos as mesmas perguntas:

- Fomos felizes?

- Pagamos o preço que os nossos sonhos exigiram?

Nesta ocasião, a consciência que temos sobre o tempo pretérito sugere que pensemos mais sobre o assunto. Surgem novas interrogações:

- Em que lugar está escondido este contentamento, se o tempo futuro continua escorrendo pelos nossos dedos e parece arremessar sonhos e felicidades para longe de nós?

As horas, agora, parecem correr na velocidade da luz, enquanto continuamos a nos questionar.

- Em que lugar perdemos o bonde da história ou deixamos de montar no cavalo que passou encilhado?

Aí, entendemos o sentido da frase: a vida é, antes de tudo, explicação.

Acreditar nos sonhos é tão importante quanto vivê-los. Deixar o cavalo passar ao largo sem montá-lo é um preço alto que pagamos por desistir daquilo que nos faz felizes.

Existem pessoas que cavam a unhas e dentes oportunidades que a outras são oferecidas de graça. Àquelas lhes faltam tudo ou quase tudo. Mas, a coragem para ir a busca dos seus sonhos é combustível que inflama o corpo e o espírito. E elas correm como lobos atrás daquilo que alimenta as suas almas. Outras passam a vida adiando, silenciando desejos e ignorando os ponteiros céleres do relógio da vida.

Por estas e por outras razões, devemos ou não pagar o valor exigido pelos nossos sonhos?

- A resposta é simples e está dentro de nós desde sempre.

Pensemos sobre os nossos desejos mais íntimos e tomemos a decisão que vai mudar o rumo das nossas vidas lembrando-nos, porém, de que a ela - a decisão – e, as suas consequências, são de nossa inteira responsabilidade. Não devemos esperar que a vida mude, nem que a felicidade chegue sem esforço, tampouco que tudo aconteça como num passe de mágica. Devemos pagar o preço pelos nossos sonhos, quaisquer que sejam eles, para que mais tarde não nos reste nenhum arrependimento, nem ninguém a quem atribuirmos à culpa por escolhas que fizemos.

As nossas vidas se autoexplicam pela cara e o valor que atribuímos a ela.


setembro 26, 2022

O Olhar de Tarcísio

 









Outro dia, eu assisti a uma cena da novela “A Favorita”. Na quietude daquela tarde, flertei com o amor que estava estampado no olhar de Tarcísio para Glória Menezes, sua parceira de tantos anos. Um olhar pulsante, cheio de ternura e admiração. Naquela ocasião, a vida e a arte iluminadas pelas luzes dos refletores fundiram-se, proporcionando-nos uma bela cena de amor. Um sentimento que fora escrito na esquina dos olhos dele e que saíra do script.

A cena fora tão comovente que, no intervalo entre uma propaganda e outra, lembrei-me de uma frase do escritor Ivan Martins: - “ não há limite de idade para o desvario”. Então, do alto dos meus setenta e dois anos de idade, vi-me carregada de urgência e expectativa a busca de um amor igual àquele. A partir dali, eu decidi: quero um amor sem fraude! Não me contento com menos. Desejo ser vista com o mesmo carinho, ternura e admiração que estavam gravados naquele olhar.

Nesta época da minha vida, as armadilhas do ego não têm espaço para expandirem-se dentro de mim. O outono que branqueou os meus cabelos deu-me também um olhar crítico e apurado. Incomoda-me as firulas de quem gasta o seu português tecendo palavras que se transformam com o tempo. Eu quero mesmo é ser olhada sem nenhum pudor e com a mesma emoção que se derramara naquela cena, através da janela dos olhos de Tarcísio. Eu quero um amor que não habite em palavras pontuadas por ausências e, sim, no silêncio de um olhar que fala. Por essa razão, eu repito: quero um amor sem fraude e carregado de urgência, mas, livre das armadilhas do ego. Um amor cuja a única expectativa é que venha carregado de ternura, carinho e admiração.

junho 22, 2022

Eu e as minhas Sombras - Pecados Inconfessos

 






“Quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra”. Esta citação refere-se à passagem bíblica (Jo 8,7), na qual Jesus é convidado a manifestar-se sobre o apedrejamento de uma mulher surpreendida em adultério.

Outro dia, um texto divulgado nas redes sociais trouxe-me à lembrança a frase acima. A revolta, a indignação, o ódio e o preconceito saltaram-me aos olhos naquela escrita e, nas entrelinhas, uma suposta perfeição moral e religiosa de quem publicou aquelas palavras. De onde vieram os pensamentos e sentimentos contidos naquela página? Esta foi a pergunta que me fiz e que deu origem ao tema em questão.

Durante décadas, eu procurei viver cristãmente e participei de todos os ritos sagrados instituídos pelo Catolicismo: batismo, confirmação, eucaristia, penitência, matrimônio, unção dos enfermos e confissão. Porém, devo dizer que houve uma ocasião em que eu me senti envergonhada de professar a minha cristandade. Isto aconteceu na Páscoa de um tempo pretérito. Como bom penitente, enquanto estive na fila do confessionário, esquadrinhei todos os recantos da memória a busca de pecado e nada encontrei contra as minhas virtudes, pureza e religiosidade.

Então, quando se aproximou o momento da confissão senti-me vestida de santidade e, entre perplexa e lisonjeada, interroguei-me:

- Estarei a caminho da iluminação!?

Naquele instante, um profundo mal-estar invadiu-me. Foi o prenúncio de um futuro inventário de culpas capaz de destruir a catedral da minha suposta perfeição moral e religiosa... E foi isto o que aconteceu ao longo dos anos seguintes. Depois daquela situação, eu revisei a minha configuração mental e passei a observar com um olhar mais crítico as minhas atitudes, os meus pensamentos e os sentimentos que eles provocaram em mim, principalmente, a soberba.

Em função disto, passei também em revista todas as minhas crenças a respeito do mundo e decidi fazer uma imersão na história de vida de cada pessoa que cruzar o meu caminho, antes de julgá-la. Nunca a frase: - “ quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra”, fez tanto sentido para mim.

Eureca! Desfez-se a santidade, a iluminação e a minha suposta perfeição moral e religiosa. Afinal, por meio desta citação, eu compreendi que também tenho sombras e pecados inconfessos.

junho 06, 2022

Uma Carta para Nana Lins - O Perfume do Tempo

 


 









Quando os primeiros raios de sol do ano de 2022 tingiram a madrugada de luz e cores nenhuma viagem, presente, festa ou lembrança do tilintar das taças de champanhe cobriu o deserto, a dor, a solidão e o buraco existencial que alguns carregaram dentro do peito. O ano de 2021 desabrigou afetos, enlutou famílias e deixou histórias inacabadas. Estamos todos ressabiados e com muitos medos. Uns mais, outros menos. Todavia, a pulsão pela vida continua e, por esta razão, quando as águas deste mês de junho caem fertilizando o terreno das minhas lembranças eu volto a me habitar.

Neste momento, o perfume do tempo insiste em espalhar fragrâncias lembrando-me que há muita vida lá fora, enquanto construo grades aqui dentro. Por isso, decido rasgar o véu do silêncio e retomar a escrita. Desta vez, um texto íntimo para falar sobre a minha primogênita.

Quando o receio da sua morte, em julho de 2021, assolou as portas do meu coração, senti-me devastada. Em minhas mãos o diagnóstico Glioblastoma de IV grau (selvagem) prenunciava uma vida breve. Paralisei! Quis dar asas às palavras para que elas alçassem voos e me libertassem do medo, da dor e do sofrimento, mas foi tudo em vão. A casa de dentro desabou e eu vi cacos em volta de mim. Perdi a lucidez! Durante dias ruminei ideias fúnebres. Estava tudo desarrumado aqui dentro. Foi aí que lembrei de quem sou: mãe, um território sagrado! Um lugar de força, fortaleza e coragem... Um não sentir medo, dor, tristeza, ansiedade, tampouco demonstrar fraqueza.

Esta carta é para falar sobre você, “Nana Lins”, mas diz muito de mim como mãe, sinônimo de amor, fé, coragem e resiliência. Por isso, revolvo as gavetas do meu sítio de memórias e o perfume do tempo traz lembranças de nós duas, desde o ventre.

Há dias, você pediu para que eu comprasse um álbum onde coubesse mais de quinhentas fotos. Queria organizar as imagens dos seus afetos, dos amores e das viagens antes que elas se apagassem dentro do seu cérebro. Um exercício para a mente. No entanto, as suas fotos ultrapassavam a casa dos mil. Não consegui encontrar o tal álbum. Pois bem, a partir de agora eu também sou o seu santuário de memórias e passo a relatá-las aqui.

Nana Lins” nasceu em 06 de agosto de 1977, às 15h de um sábado mais que esperado. Foram cinco meses de ansiedade até que o teste de gravidez desse positivo. Foram nove meses tecendo sonhos e bordando fantasias sobre como seria o rosto e o sexo do meu primeiro bebê. Sonhava e desejava que fosse uma menina. Aí você chegou provocando sustos. Foi logo me levando para o balão de oxigênio e durante os anos seguintes continuou tirando o meu fôlego... Estreou na passarela da vida em grande estilo, como uma boa leonina, chamando a atenção para si mesma. Depois disso, nunca mais os seus dias passaram em branco. Nem os meus. Tudo era festa, presentes, luzes e cores, porém o trono, a coroa e o palco foram sempre seus. E eu que me “virasse nos trinta” para realizar todas as suas fantasias: festas de aniversário, festas de Natal (eu caracterizada de Mamãe Noel) árvores natalinas (algumas) enfeitadas de bombons e chocolates, festas da Páscoa (ovos de chocolates escondidos pela casa) decoração do quarto de dormir com direito a luzes de camarim, coleção de papéis de cartas, visitas à livraria de seu Bartolomeu, compras de brinquedos, principalmente, de bonecas Barbie e seus adereços, bicicleta, patins, etc. Teve também a época da dança, do curso de balé no Studio de Enock e depois em Stela Paula. E, as viagens?

No Brasil foram tantas, a começar por Pernambuco aonde fomos várias vezes atraídas pelo brilho das lojas do Shopping Center Recife. A princípio, quando você ainda era uma criança em busca de brinquedos e depois, na adolescência, desejando comprar roupas de marcas. A Loja Mercearia era uma das suas preferidas. De lá, voltávamos felizes e carregadas de presentes, já pensando na próxima viagem.

Então, você foi crescendo e as prioridades mudando. Pediu para sair do Colégio das Lourdinas, queria estudar no Colégio PHD, um lugar onde os gatinhos fervilhavam na hora da saída. Tempos de flores e de paquera! Fez novas amizades e conservou as antigas: Bia, Claudinha, Ana Cristina, Dani Quirino, Bela, Flavinha e Fábia. Amizades para a vida toda, baseadas no afeto, na solidariedade, na compreensão, na tolerância e na aceitação das diferenças.

No dia 14 de maio de 1992, Nana Lins dá um salto para a maturidade. A morte precoce de seu pai mudou não só a nossa estrutura familiar, como também, provou que em todas as perdas há um ganho. Amadurecemos todos física, emocional e economicamente... Depois do luto, a vida seguiu e os dias começaram a ficar ensolarados, até o sonho de ir a Disney tornou-se possível. A partir de então, festas, reuniões, mesas fartas e a garotada alegre faziam da nossa casa um ponto de encontro... Um lugar feliz! A turma do PHD, do Colégio das Lourdinas e da Cultura Inglesa estavam sempre presentes. E eu, além de mãe, virei fada madrinha. Você sonhava e a varinha mágica entrava em ação.

Lembra da festa surpresa dos seus dezoito anos? De dentro do bolo saiu uma passagem para a sua primeira viagem internacional, sozinha. Inglaterra era o destino. Neste país foi duas vezes: Uma para Londres e outra para Leeds. Na volta, comemorávamos com muitos abraços, alegria e mesa festiva. Ah! Nana, as histórias de viagens, festas, surpresas e comemorações foram tantas que preencheriam páginas e páginas em branco, porém não quero me alongar mais do que já o fiz, para não cansá-la. Vamos relembrar um passado mais recente.

Quando você passou no vestibular da UFPB inaugurou uma época de conquistas e prêmios. A licenciatura no curso de letras (Inglês) a levou para longe de nós. Faria o Mestrado e o Doutorado em Florianópolis, (Santa Catarina) e passaria onze meses morando em Leeds, na Inglaterra. Posteriormente, foi morar na Austrália por seis meses e, anos depois, passaria alguns meses na Argentina, em um Pós-Doutorado. O perfume do tempo incensou os seus dias. A essa altura você já havia passado em três concursos nas Universidades: UEPB, UFCG e, finalmente, na UFPB. Nesta, virou pesquisadora do CNPQ e inscreveu o seu nome no mundo acadêmico. Tornou-se Analista da Linguagem Verbal e Visual. Participou de bancas, de palestras, organizou um livro (com outros professores) e abriu um congresso no Chile. Neste universo acadêmico inscreveu o seu verdadeiro nome: Danielle Barbosa Lins de Almeida.

No entretanto, a vida, seus mistérios e o inesperado se fizeram presentes a partir do dia 22 de julho de 2021. O diagnóstico de um Glioblastoma de IV grau (selvagem) surgiu no momento mais feliz da sua vida. Em junho deste mesmo ano, você se inscreveu no concurso “Vozes de Cabedelo”, se descobriu cantora e adotou o nome de “Nana Lins”, uma justa homenagem a seu pai que a chamava de “Nana”. Conseguiu chegar a etapa semifinal e, apesar de não vencer o concurso, foi incentivada pela pianista Sandra Lemos a investir em aulas de canto.

Em 29 de julho de 2021 você foi operada. Dois dias antes da cirurgia, queimou vários diários onde escrevera relatos sobre viagens, vitórias, intimidades, dores e angustias. Encerrou as suas contas nas mídias sociais e fez um único pedido: - que a página “Nana Lins” no “Instagram” permanecesse aberta e alimentada. Nascia ali o desejo e o sonho de permanecer cantora, apesar das dificuldades do presente.

Pois bem, “Nana Lins”, a sua página continua aberta deste então e a sua voz continua se fazendo ouvir, embora ainda precise amadurecer com aulas de canto, muito estudo e determinação. De minha parte, como mãe e fada madrinha eu reafirmo o compromisso de cuidar de você e lhe colocar de pé, quiçá cantando em cima de um futuro palco, para que a sua luz continue brilhando. Hoje, somos só nós duas dentro do meu apartamento lutando pela sua vida, mas, lá fora, há muita gente boa, generosa, empática e solidária orando e intercedendo pela sua saúde. Faça jus a esse amor, não desista de lutar!

maio 19, 2021

Lições da Pandemia – A Face de Deus

 























Por esses dias, andei lembrando das frases ‘educativas’ de minha mãe. Ela nasceu em 1901 e morreu no ano de 1982. As mães de sua geração educavam os filhos com o olhar. Um simples mirar indicava aprovação ou castigo. E quando abriam a boca não havia, como era de se esperar, um manual de instruções de bom comportamento a ser entregue. Tudo o que elas achavam necessário para o nosso aprendizado era resumido em pequenas frases:

“- Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”.

“- Diz-me com quem anda e dir-te-ei quem és”.

“- A boca fala do que o coração está cheio”.

“- A lei do retorno é implacável”.

“- De tudo podemos tirar uma lição”.

Pois bem, de todas essas sentenças proferidas por minha mãe, a última é uma lembrança assídua nesses tempos de pandemia. Eu preciso me situar, entender como tirar lições dessa tragédia.

Obviamente, que a essa altura dos acontecimentos todos já sabemos dos efeitos nefastos da Covid-19, todavia, quero deter-me no lado positivo dessa doença. Porque há, sim, de acordo com as palavras de mãe Julia, uma lição a ser aprendida. Portanto, eu vou seguir a sua orientação e procurar o lado bom da experiência de viver em tempos pandêmicos.

Na infância, eu tive aulas de catecismo e fiz a primeira comunhão. Durantes décadas fui à igreja, assisti à celebração das missas e participei da eucaristia. Adorava as leituras do Evangelho, suas metáforas e os seus ensinamentos.

Porém, em todas as ocasiões havia um desejo latente: queria encontrar Deus e conhecê-lo melhor. E nenhum lugar era mais apropriado para esse encontro do que a casa Dele. Entretanto, na inocência da minha fé, eu estranhava quando via aquele Homem pregado no madeiro e me perguntava:

“- Como posso ter intimidade com um Ser que não desce do alto de sua Cruz”?

E voltava para casa triste e desesperançada. Nunca haveria de encontrar aquele Homem frente a frente.

Então, em março de 2020, surgiu a Covid-19 e, por meio dela, eu pude ver a Face de Deus. Já não precisava mais ir à Igreja para encontrá-lo. Ele estava disponível para mim e para qualquer pessoa que o procurasse. Naquele momento, eu entendi que a morada de Deus é dentro de nós!

E eu tenho um encontro com Ele todos os dias, quando vejo o seu rosto nos que dormem nas marquises dos edifícios, nos que habitam debaixo dos túneis das grandes metrópoles, nos que estão nos sinais de trânsito, nas Cracolândias das cidades, nas prisões superlotadas, nas portas dos hospitais implorando por um leito, e ainda, nos imigrantes que navegam por dias e noites fugindo da guerra, da fome e da miséria em busca de solidariedade, de afeto e de abrigo.

Eu tenho um encontro com Ele quando sinto a dor dos órfãos e dos desempregados da pandemia. Eu tenho um encontro com Deus quando, em nome Dele, acolho o diferente sem fazer perguntas. Quando entendendo a necessidade do próximo eu ofereço ajuda sem que ele precise estender a mão.

Eu tenho um encontro com aquele Homem da Cruz quando perdoo a quem me ofende, a quem fala mal de mim, a quem trai a minha confiança e se ausenta quando eu mais preciso de apoio.

Deus mora dentro de mim! Ele está dentro do meu coração quando eu olho para os meus irmãos de qualquer raça, etnia, orientação sexual ou condição financeira sem nenhum preconceito.

O Deus que habita em mim convida-me a ir à igreja quando eu preciso de paz, tranquilidade e silêncio para refletir sobre a multidão dos meus pecados e para participar da eucaristia. Contudo, quando termina a celebração, é dentro de mim que eu o encontro, porque acredito nos ensinamentos e na força das palavras do evangelho:

- “ Tudo o que fizerdes ao menor dos meus irmãos, a mim o fazeis”. (MT 25,40).

Em vista disso, eu tenho um encontro com Ele todos os dias quando abraço, dou ouvidos e escuto atentamente a dor do outro. É nele, nesse outro, que eu vejo a Face de Deus quando respondo ao apelo silencioso dos seus olhos e do seu coração famintos de fé e de esperança.

A minha mãe tinha razão quando dizia:

“- De tudo podemos tirar uma lição”.

A Pandemia exibiu o lado mais cruel da Covid-19. A essa altura, mais de quatrocentas e trinta mil pessoas perderam suas vidas e deixaram órfãos os seus afetos.

Entretanto, tanto eu quanto milhões de pessoas tivemos o privilégio de ter um encontro com o Homem da Cruz e, por seu intermédio, aprendermos a lição do amor, da empatia e da solidariedade. A Face de Deus está no outro!



março 21, 2021

A Menina e o Mistério dos Porquês

   









Ela assistiu ao filme Marcelino Pão e Vinho, quando ainda era uma criança acostumada a percorrer vários quilômetros atrás da procissão do Senhor Morto. De imediato, desejou ter com aquele Homem pregado na Cruz a mesma intimidade da qual desfrutava o menino que protagonizava a película. Apesar de sua pouca idade, já ensaiara vários monólogos com a imagem de Jesus, colocada acima do piano, da sala de estar. Como Marcelino ela também tinha várias perguntas sem respostas.

Usava todos 'os porquês' que a gramática colocava a sua disposição. No entanto, o silêncio da imagem se impunha. 'Porque' junto indicando causa, justificativa ou explicação perdia a serventia. Estava instalado o Mistério! E a menina, perseverante, ainda gastaria muitos dias, durante anos, neste solilóquio. Costumava ouvir de algumas pessoas:

"- Jesus falou comigo!"

Ela, que Dele não obtinha resposta, sentia-se pequena diante daquele Ser pregado na Cruz. Sabia-se imérita, mesmo assim, insistia:

"- Jesus, fala comigo!"

Então, à medida em que ela crescia em estatura ganhou experiência, conhecimento e sabedoria. Aos poucos, foi-se fazendo luz sobre o Mistério dos 'Porquês'.

Certo dia, ela deitou-se na rede que estava armada na varanda de sua casa e viu descer do caminhão da prefeitura, cerca de vinte pessoas, entre homens e mulheres. De pronto, os 'porquês' entraram novamente na sua rotina. Ela elevou os olhos para o Céu e perguntou:

"- Meu Jesus, 'por que' tanta injustiça? Enquanto refestelo-me numa rede, estas pobres criaturas vêm capinar ao sol a pino e, em muitas ocasiões, sem terem se alimentado bem durante todo o dia."

"- Responda-me Senhor, 'por quê'?"

Naquele momento, a menina que não se julgava merecedora de falar com o Homem da Cruz, sentiu uma voz ecoar dentro de si.

"- E se você estivesse entre estas pessoas o que gostaria de receber?"

Ela não hesitou na resposta:

"- Eu gostaria de receber um lanche, porque a esta hora do dia devo estar com fome."

Então, Jesus lhe disse:

"- Levanta-te da rede! Prepara um lanche e ofereça a eles."

"- Não se preocupe mais com 'o porquê' da fome, da miséria, do abandono, da injustiça, da desigualdade social e do preconceito"... 'Porque' junto significa causa, justificativa ou explicação... Ponha-o em prática!

De agora em diante, faça ao outro aquilo que gostaria que ele fizesse a você, nesta ou em qualquer ocasião em que a necessidade de amor, solidariedade e empatia se fizer presente. Esta é a lei do Amor e causa, motivo, justificação ou explicação de você estar no mundo.

E foi a partir daquele dia, que a menina aprendeu tudo sobre o Mistério dos Porquês. Enfim, entendera que todos eles respondem a uma única pergunta:

"- E se o outro fosse você, como gostaria de ser tratado?"

fevereiro 17, 2021

O Terço da Gratidão

 








Nesta manhã que principia uma quarta-feira de cinzas do ano 2021, eu dobro os meus joelhos diante da imagem do Sagrado Coração de Jesus e resgato a minha . O fio condutor para a prece que se inaugura foram os versos do poema de Janete Manacá:

“ - na ânsia de não me perder

ampliei tanto a visão

que vi flores nas

pedras do chão. ”

Sim, tenho visto flores nas pedras do chão nesta época de pandemia da Covid-19. Os meus olhos, antes enevoados, abriram-se para as graças em abundância que tenho recebido do Altíssimo. Por isso, se faz necessário, neste momento, rezar o terço da gratidão:

Graças eu vos dou, Meu Deus, pelo sopro de vida que ainda habita em minhas entranhas. Graças eu vos dou pelo pão que amanhece sobre a minha mesa, pela água que sacia a minha sede, pela luz que ilumina os meus passos, pelo trabalho que paga as minhas contas e pela precariedade que não bateu à porta da minha casa.

Graças eu vos dou, Meu Senhor, pela vida dos meus filhos, do meu neto, dos meus parentes e dos meus amigos. Graças eu vos dou por dialogar com a minha consciência e, por meio dela, resgatar em mim a , o respeito e a compaixão pelo outro.

Quantos ainda sofrem no leito de um hospital, outros à espera de uma vaga e, muitos ansiando pelo ar que lhes falta? Inúmeros já partiram sem poder despedir-se dos seus afetos, e milhares viraram estatística em um país em desgoverno. Tantos ficaram órfãos, outros perderam o emprego e, alguns o seu único ganha pão.

Meu Deus, quantos dos meus semelhantes vivem em asilos, em orfanatos, nas marquises dos edifícios, nas ruas da Cracolândia e nos mares da imigração abandonados à própria sorte? Quantos pegam em armas para defender uma guerra que não é sua? Quantos nas filas dos desempregados, nos sinais de trânsito e nas portas dos supermercados? E, até quando?

Por tudo isso é que, hoje, quarta-feira de cinzas do ano de 2021, eu lanço mão do poema de Janete Manacá e ponho a minha consciência de joelhos. Neste momento, faço das contas do meu terço, pedras/flores e rezo com gratidão.

Obrigada, Senhor!


janeiro 17, 2021

A Tua Mão Benfazeja

 













 Nascemos folhas de papel em branco e, ao longo da vida, vamos rascunhando a nossa biografia. Durante o processo de caminhar somos auxiliados por várias pessoas. Algumas têm mãos benfazejas, nos indicam rotas seguras, caminhos menos tortuosos.  Entre todas elas, podemos escolher heróis, ídolos, gente importante ou gente comum a quem admirar e seguir.  
    Eu escolhi a ti, meu Pai! Contudo, cuidado onde pisas! E para aonde os teus pés me levam. 
    Não escolha ser herói, nem ídolo! Tampouco, importante... para que a vida não te roube o tempo da minha educação. 
    Seja só humano. Demasiadamente humano, para observar e entender os meus passos incertos, o meu andar vagaroso, as minhas opções equivocadas, as minhas dúvidas, ansiedades e inseguranças.  
    Não exijas que eu pise firme em terreno no qual já deixaste as marcas dos teus sapatos. Este foi o teu caminho... A tua experiência. Deixes que eu escolha o meu e exercite o aprendizado. 
    No entanto, não hesites em estender-me as mãos quando eu buscar por auxílio, pois esta é maneira que eu tenho de mostrar respeito e admiração pela forma como conduziste a tua vida.  
    Não te envergonhes do teu currículo pouco extenso, nem da tua biografia sem grandes feitos. Quero-te simples, bondoso, compassivo...  Humano! Já o disse. E que te mantenhas a alguns passos de distância durante a minha trajetória, porém ao alcance das minhas mãos estendidas. 
    Quando eu errar, não me condenes! Não me critiques! Apenas, observa.  E, quando solicitado, ajuda-me!
    Quando eu estiver indeciso, hesitante, irresoluto, não me fales das tuas conquistas, nem dos teus acertos...  Eles são frutos das tuas escolhas, não das minhas. Eu ainda sou um aprendiz do caminho que escolhi. Posso mudar de rota, ajustar os passos e rever decisões. 
    Todavia, se mesmo assim, eu permanecer no erro, seja colo e abrigo quando eu buscar refúgio, pois foi tua mão benfazeja que orientou os meus primeiros passos e é em ti que eu me espelho.  
 
 

dezembro 11, 2020

Reflexão em Época de Pandemia

 








O ano de 2020 ficará marcado em nossa memória como um lembrete de Deus – para quem Nele acredita. Um aviso, um conselho, quiçá uma advertência amorosa de um pai atento aos desmandos dos seus filhos.

A azáfama diária com a qual conduzimos as nossas vidas até o advento da Covid-19, não nos permitiu o benefício da reflexão. Tínhamos pressa em viver, em aproveitar a vida... Cada mergulho na superficialidade dos dias era comemorado com um flash. O caráter efêmero das coisas e da nossa existência não nos preocupava. Julgávamo-nos imortais.

Então, apareceu a pandemia e, com ela, a necessidade de refletirmos sobre valores, comportamentos, atitudes e ações que deverão nortear a nossa caminhada daqui para a frente.

A soberba, a empáfia, a vaidade, a ignorância e o egoísmo de alguns são substantivos que, agora, repousam sob a lápide do esquecimento, advertindo-nos de que ninguém é uma ilha e de que juntos somos mais.

Não nos cabe, aqui, investirmo-nos no cargo de juízes da humanidade, nem ditar padrões e normas do que é certo ou errado em relação ao negativismo e ao pouco caso sobre a pandemia.

A cada um é dado o direito a escolhas e às suas consequências. Mas a verdade é que a Covid-19 destronou a nossa arrogância, obrigando-nos a substituir tais substantivos por outros que possam adjetivar a nossa essência: bondade, solidariedade, caridade e empatia. Este último o melhor termômetro para medir o caráter das pessoas.

A empatia nos faz enxergar, compreender e colocarmo-nos no lugar do nosso semelhante. Este outro ser que tem o sagrado direito de viver com a mesma dignidade que almejamos para nós. Quando subtraímos dele, este direito, elevamos o nosso egoísmo ao mais alto grau de incivilidade.

Por esta razão é que vale a pena, em qualquer circunstância, assumirmos o lugar do outro e perguntar:

- E se fosse comigo ou com a minha família, o que eu faria?

Pois é, a dor do mundo tem de ser a minha dor! Somos todos habitantes de um mesmo planeta e sujeitos aos mesmos problemas.

A mesa farta, a opulência, o emprego, o acesso à saúde e à educação não são garantias “ad aeternum”. Tampouco a fome, a miséria, o desemprego e a ignorância. A roda gigante gira. As coisas mudam de mão, de direção e de sentido. Temos exemplos na política e nas grandes fortunas que não nos deixam mentir. Um dia estamos no pódio da vida, noutros deixamos a vida palaciana e beijamos a lona.

O ano 2020 e a Covid-19 são um convite à reflexão. Ou mantemos a nossa vigilância e mudamos as nossas atitudes e escolhas, ou descansaremos muito em breve sob a lápide do esquecimento. A Covid-19 vai passar... As pessoas passarão!

novembro 23, 2020

Ting Liguin Ting– Olha o Cavaco Chinês!

 

 









As lembranças são colchas de retalhos que nos agasalham em tempos de frio, solidão e saudades que irrompem sem aviso prévio. Algumas delas – as saudades - são motivos de celebração. Elas se manifestam pelas frestas da memória quando um olhar, um som, um cheiro ou perfume desperta os nossos sentidos. Desta vez, foi uma imagem! Imagem que evocou um som: ting liguin ting... olha o cavaco chinês!

Esta imagem, e este som agradável que ecoou durante anos em meus ouvidos, chega hoje à Igreja Catedral, em Campina Grande, pelas mãos de Maristela Feitosa. Uma amiga de infância.

Ao abrir a página do Facebook encontro a fotografia do cavaco chinês e a sugestão dela para um possível texto. A princípio, pensei em rechaçar a proposta. Tinha o argumento na ponta da língua: não sei escrever por encomenda!

Então, recordei-me da hóstia que recebi durante a minha primeira comunhão e vi analogia entre ela e o cavaco chinês. Ambos, remetiam-me ao território sagrado da infância.

Na década de 1950, eu recebi o sacramento da Eucaristia. Um encontro que selou a minha intimidade com Deus. Naquele dia, eu alberguei, nos cercados da memória, a recordação mais doce de que eu tenho do Pai.

Aos meus olhos de criança, Ele tornou-se alimento para o meu espírito, em forma de cavaco chinês. Na inocência dos verdes anos eu deduzi que os dois – cavaco chinês e hóstia - tinham a mesma textura e sabor. Um e outro lembravam infância, pureza, fé e alegria.

Hoje, eu constato que eles também têm sabor de saudades! Saudades que evocam a presença do Invisível, em uma oração sem as palavras costumeiras...

A meu ver, no ato de receber a hóstia – com a textura que lembrava aquela guloseima - Deus humanizou-se para hospedar-me. Ele se ofereceu em amor, refúgio, fortaleza e agasalho para os tempos frios e solitários que estavam por vir.

Pois bem, neste momento, a saudade veio para redimir-me! Ao cobrir a nudez dos meus pensamentos com a colcha de retalhos feita de lembranças, lembrei-me de que os sinos dobraram por mim, naquele dia, da minha primeira comunhão, na Igreja Catedral, em Campina Grande.

Era o Pai, o Filho e o Espírito Santo perdoando os meus pecados e dando-me boas-vindas!

Gratidão, por lembrar-me Maristela! Cavaco chinês é “sinônimo” de perdão e celebração.

novembro 11, 2020

A Dor do Outro Quanto Custa ao seu Bolso?

 















As eleições estão se aproximando. A propaganda eleitoral gratuita começou nas rádios e TVs do nosso País. Em época de pandemia não pode haver comícios, nem abraços, tapinha nas costas, tampouco colocar crianças nos braços como faz a maioria dos candidatos.

Tempos atrás, seguíamos em carreata por um que nos representasse. Sonhávamos com o candidato que rasgasse a fantasia do seu antecessor e, em nosso devaneio, acreditávamos em suas promessas de campanha. Hoje, urge fazer uma pergunta:

- Quantos candidatos podem tirar o véu da hipocrisia? Quantos deles podem empunhar a Bandeira e cantar o Hino Nacional sem que o rubor da vergonha tolde as suas faces?

Antes que os apressados de plantão me julguem, quero lhes dizer que pouco entendo de política e que, durante décadas, entreguei o meu voto a quem me pareceu coerente em relação ao discurso e a sua vida pública.

Todavia, devo admitir que em tempos de eleições é nefasto ficar calado, quando abundam propagandas e promessas de campanha irrealizáveis.

Recorro então às gavetas da minha memória e retiro uma frase já gasta pelos anos: “para mudar o mundo terá que primeiro modificar a si mesmo”. Isto me leva à história do passarinho que ao ver a floresta pegando fogo foi à busca de água para apagar o incêndio. Logo, os apressados de plantão disseram que era loucura e riram da sua atitude. Porém, o pássaro respondeu:

- Estou apenas fazendo a minha parte!

Pois bem, neste momento, mesmo sem entender a ciência da política, eu me visto de penas e lhes dou um conselho: não vote em candidato que vai legislar em causa própria... Vivemos em uma aldeia global. Investigue, informe-se!

Exercite a razão! Ela o conduzirá à liberdade de pensamento e ninguém o fará massa de manobra para fins eleitoreiros. Como você, eu também estou exercitando a minha. E tenho me surpreendido cada vez mais com os resultados.

A essa altura do campeonato não tenho político de estimação e, confesso, desconfio dos moralistas... Estes são os piores. Em nome da Pátria e da Família cometem atrocidades.

Meu voto é pela coerência entre o discurso e a prática. Pois a maturidade me mostrou que o véu da hipocrisia norteia a vida de muitos dos atuais candidatos.

A partir deste pleito eleitoral eu vou perguntar aos vereadores e prefeitos, de agora, e, também, aos futuros deputados, governadores, senadores e presidentes da república:

- A dor do outro quanto custa ao seu bolso? Até quanto vale barganhar a miséria humana para ser eleito?

A depender da lisura e do engajamento político e social destes futuros representantes do povo, eles poderão ganhar o meu voto e a minha admiração. Não estou a busca de candidato perfeito. Todos são, demasiadamente, humanos! Mas, espero por alguém que não deite em berço esplêndido, enquanto as caravanas de mortos, de famintos e desempregados passam. Até lá, desejo que a lâmina do meu verbo esteja afiada pela consciência e pela razão! Estou de olho neles!


setembro 24, 2020

Porta - Retratos

 
















O porta-retratos foi concebido para guardar a recordação de alguém na pausa de uma fotografia, mas dele eu não preciso quando o assunto é o meu irmão Dagoberto. Ele foi durante muito tempo o meu espelho e lugar de afeto no mundo. Dele, eu tenho memórias indeléveis: a sua força moral, a sua franqueza e o seu caráter incorruptível.

Meu irmão dispensava qualquer benefício que não fosse proveniente da honra e da lealdade. A ele não interessava as artimanhas do poder, do dinheiro e da corrupção. O seu caráter foi forjado na luta pela sobrevivência e desconhecia qualquer privilégio, pois no banquete da vida lhe foi reservado o último lugar à mesa. E isto, foi decisivo na formação do seu caráter.

Cresci observando aquele homem sério, de poucas conversas e poucos amigos, mas de gestos grandiosos. Nasceu em uma família abastada, porém não teve grandes regalias: não concluiu os estudos, não teve ternos de corte inglês, não tirou carta de motorista, nem teve os aplausos pelo reconhecimento do seu trabalho, como os outros filhos. Era o filho que não quis estudar! Naquela época, o orgulho das famílias se voltava para os filhos que saiam de casa e traziam na bagagem o título de doutor. Estes, sim, eram incensados!

Logo cedo, ele percebeu que deveria procurar um rumo para sua vida. Ganhou o mundo atrás de um trabalho que lhe desse dignidade e respeito. Enveredou pelo caminho do comércio. Trabalhou durante anos como balconista de uma grande loja de tecidos. Neste lugar, o seu caráter foi posto à prova de fogo.

O proprietário da loja precisou se ausentar por um longo tempo e, já tendo observado a retidão de caráter do seu funcionário, chamou-o a um canto para conversar e disse-lhe:

- Dagoberto, eu vou fazer uma viagem e necessito de alguém de minha confiança para tocar os negócios. Escolhi você... A partir de hoje, eu vou colocar a loja em seu nome e darei carta branca para você gerir tudo o que diz respeito ao bom andamento da firma. E, assim foi feito!

Nos meses subsequentes, meu irmão trabalhou com afinco e dedicação como se a loja fosse sua, sem nunca reclamar do excesso da lida, nem da responsabilidade que lhe fora confiada.

Anos depois, por motivos familiares, saiu deste emprego e foi morar em Natal, capital do estado do Rio Grande do Norte. Carregava na alma uma dor profunda. Pela primeira vez na vida eu o vi chorar e se vergar diante da dor e do sofrimento de não poder levar os filhos consigo. Nunca mais seria o mesmo...

Neste momento, lembro-me dos nossos bate-papos na varanda da casa do Brisamar e das confidências que trocamos ao som da canção “Nada Além”, cantada na voz de Nelson Gonçalves. Lembro-me também, de como gostava de vê-lo comer. Ele tinha um jeito peculiar de degustar a comida. Os sabores passeavam lentamente pela sua boca. Tanto fazia um simples feijão com arroz, quanto a melhor iguaria. Comer era um ato sagrado. Um ritual sem a pressa do cotidiano.

Ah, meu irmão, quantas saudades você deixou!

Na última vez em que conversamos você contou-me com um orgulho incontido:

- Nos últimos meses de vida de nosso pai, tivemos uma longa e necessária conversa. Perguntei-lhe por que ele fora tão duro comigo, durante toda a vida. E, sabe o que ele falou?

- Eu respondi: não!

Naquele instante, você olhou-me com um olhar profundo e disse:

- Agi assim porque você é o filho que mais se parece comigo.

Então, naquele dia, nenhuma palavra mais foi necessária. Você, Dagoberto, estava apaziguado com os seus fantasmas. E, eu, feliz por você!


setembro 06, 2020

Livraria Pedrosa – Faça do Livro seu Melhor Amigo



 

 


 

Se eu fechar os olhos, por um instante, e deixar-me embalar pelos sentidos da visão, audição e olfato não preciso de nenhum meio de locomoção para ir à Livraria Pedrosa, localizada na Rua Maciel Pinheiro, no centro da cidade de Campina Grande-PB.

Uma sucessão de imagens, sons e cheiros chega-me pelos sentidos. Viajo através das lembranças e atravesso caminhos de afeto e de saudades para demonstrar a minha gratidão. Nesse momento, ela é direcionada a figura de José Cavalcanti Pedrosa. O livreiro que marcou época na cidade de Campina Grande fazendo do seu comércio um templo do saber.

Lá pelos anos de 1950, vivíamos dias tranquilos. Podíamos andar a pé pelas ruas e bater papo com os amigos, sem nenhum receio de sermos abordados por algum delinquente. Criança, eu ia ao colégio sozinha. Lembro-me de fazer, diariamente, todo o percurso do Colégio Alfredo Dantas até a loja de livros e, só depois, retornar a casa. Gostava de manusear os livros, de embriagar-me com o seu cheiro.

Ao entardecer, quando a sineta do colégio anunciava o encerramento das aulas, eu mal continha o impulso de sair correndo em direção àquele lugar cujo slogan era: “ Faça do livro seu melhor amigo”.

Pedrosa, como era chamado pelos mais íntimos, era uma figura austera. Poucas vezes eu o vi sorrir. Entretanto, por trás daquele semblante sério e de uma postura rígida escondia-se um coração amoroso. De pronto, ele percebeu a minha fome de palavras e a sede de conhecimento, apesar de toda a timidez da qual eu era portadora.

Então, quando eu cheguei à livraria, em um desses entardeceres em que a vida parece nos saldar com um sorriso, Seu Pedrosa presenteou-me com um livro dos Irmãos Grimm. Em seguida, fez-me o convite para frequentar à casa de sua família e ter acesso aos livros de sua estante particular. Este foi um momento histórico em minha vida. Uma alegria incontida tomou conta de mim. Numa fração de segundos me vi descobrindo uma fonte de água em pleno deserto. E, senti-me importante e querida por aquele livreiro a quem poucos tinham acesso a sua intimidade.

Para José Cavalcanti Pedrosa eu era a menina que devorava livros. Que os cheirava como quem cheira uma fruta madura pronta para ser consumida.

A partir daquele dia, Pedrosa substituiu o olhar circunspeto e passou a acolher-me de maneira filial, amorosa e terna. Muitas vezes, quando me via, um leve sorriso se desenhava em seus lábios. Era a sua maneira de dizer: seja bem-vinda! Sacie a sua sede de conhecimento.

Por tudo isso, hoje, as minhas letras e o meu brincar com as palavras se vestem de respeito e de ternura para reverenciar a sua memória. Ave, Pedrosa! A sua vida, salvou a minha... Gratidão!