O porta-retratos foi concebido para guardar a recordação de alguém na pausa de uma fotografia, mas dele eu não preciso quando o assunto é o meu irmão Dagoberto. Ele foi durante muito tempo o meu espelho e lugar de afeto no mundo. Dele, eu tenho memórias indeléveis: a sua força moral, a sua franqueza e o seu caráter incorruptível.
Meu irmão dispensava qualquer benefício que não fosse proveniente da honra e da lealdade. A ele não interessava as artimanhas do poder, do dinheiro e da corrupção. O seu caráter foi forjado na luta pela sobrevivência e desconhecia qualquer privilégio, pois no banquete da vida lhe foi reservado o último lugar à mesa. E isto, foi decisivo na formação do seu caráter.
Cresci observando aquele homem sério, de poucas conversas e poucos amigos, mas de gestos grandiosos. Nasceu em uma família abastada, porém não teve grandes regalias: não concluiu os estudos, não teve ternos de corte inglês, não tirou carta de motorista, nem teve os aplausos pelo reconhecimento do seu trabalho, como os outros filhos. Era o filho que não quis estudar! Naquela época, o orgulho das famílias se voltava para os filhos que saiam de casa e traziam na bagagem o título de doutor. Estes, sim, eram incensados!
Logo cedo, ele percebeu que deveria procurar um rumo para sua vida. Ganhou o mundo atrás de um trabalho que lhe desse dignidade e respeito. Enveredou pelo caminho do comércio. Trabalhou durante anos como balconista de uma grande loja de tecidos. Neste lugar, o seu caráter foi posto à prova de fogo.
O proprietário da loja precisou se ausentar por um longo tempo e, já tendo observado a retidão de caráter do seu funcionário, chamou-o a um canto para conversar e disse-lhe:
- Dagoberto, eu vou fazer uma viagem e necessito de alguém de minha confiança para tocar os negócios. Escolhi você... A partir de hoje, eu vou colocar a loja em seu nome e darei carta branca para você gerir tudo o que diz respeito ao bom andamento da firma. E, assim foi feito!
Nos meses subsequentes, meu irmão trabalhou com afinco e dedicação como se a loja fosse sua, sem nunca reclamar do excesso da lida, nem da responsabilidade que lhe fora confiada.
Anos depois, por motivos familiares, saiu deste emprego e foi morar em Natal, capital do estado do Rio Grande do Norte. Carregava na alma uma dor profunda. Pela primeira vez na vida eu o vi chorar e se vergar diante da dor e do sofrimento de não poder levar os filhos consigo. Nunca mais seria o mesmo...
Neste momento, lembro-me dos nossos bate-papos na varanda da casa do Brisamar e das confidências que trocamos ao som da canção “Nada Além”, cantada na voz de Nelson Gonçalves. Lembro-me também, de como gostava de vê-lo comer. Ele tinha um jeito peculiar de degustar a comida. Os sabores passeavam lentamente pela sua boca. Tanto fazia um simples feijão com arroz, quanto a melhor iguaria. Comer era um ato sagrado. Um ritual sem a pressa do cotidiano.
Ah, meu irmão, quantas saudades você deixou!
Na última vez em que conversamos você contou-me com um orgulho incontido:
- Nos últimos meses de vida de nosso pai, tivemos uma longa e necessária conversa. Perguntei-lhe por que ele fora tão duro comigo, durante toda a vida. E, sabe o que ele falou?
- Eu respondi: não!
Naquele instante, você olhou-me com um olhar profundo e disse:
- Agi assim porque você é o filho que mais se parece comigo.
Então, naquele dia, nenhuma palavra mais foi necessária. Você, Dagoberto, estava apaziguado com os seus fantasmas. E, eu, feliz por você!
Um comentário:
Lindo e comovente ! Te ler sempre emociona do modo que falas das tuas histórias, lembranças! Adorei! Linda saudade! beijos, tudo de bom,chica
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