Reconstruindo Caminhos

Reconstruindo Caminhos
Escrevo porque chove saudades no terreno das minhas lembranças e na escrita eu deságuo as minhas urgências, curo velhas feridas e engano o relógio das horas trazendo o passado para brincar de aqui e agora... Costumo dizer que no calçadão da minha memória há sempre uma saudade de prontidão à espreita de que a linguagem da emoção faça barulho dentro de mim e que, nessa hora, o sal das minhas lágrimas aumente o brilho do meu olhar e uma inquietação ponha em desalinho o baú de onde emergem as minhas lembranças, para que eu possa, finalmente, render-me à folha de papel em branco...

agosto 25, 2023

A Vitrola

 














A precisão cirúrgica da agulha deslizando hoje sobre as ranhuras do vinil, acorda lembranças adormecidas no berço das saudades. É chegada a hora de revivê-las, pois como bem disse o Padre Fábio de Melo: “... as idades da vida são rios que nunca deixam de desaguar em nós”.

Em outubro de 2019, eu encaixotei alguns pertences e deixei a Casa do Brisamar. Havia poucas caixas. Uma delas, a mais valiosa, era depositária de um silêncio repleto de sons. Naquela embalagem de papelão estiveram armazenados todos os meus discos de vinil e a história musical da minha vida com seus ruídos de alegria, felicidade, dor, saudade, lágrimas e solidão.

Lembro-me, agora, porque as recordações foram arquivadas em um sítio de memórias cheio de sons, passos, cheiros, cores e lembranças. Todos elas falaram de uma pátria de intimidades. E é para este lugar sagrado, onde alberguei tantas saudades esquecidas, que eu volto, neste instante, com o olhar ainda úmido pela possibilidade de revisitar a casa de dentro.

Há pouco mais de um mês, uma ideia surgiu em minha cabeça: comprar uma vitrola. Naquela ocasião, lembrei-me que na década de cinquenta, numa data próxima ao dia das mães, o meu tio Chico Maria presenteara Mãe Júlia com uma Radiola. Era assim que chamávamos a vitrola naquela época.

A chegada daquele móvel nos causara emoção e alegria. Uma peça de mobília para fazer companhia ao piano e aos outros móveis na sala de visitas. Uma sala que fora previamente preparada para receber tão distinta companhia. Trago à memória, até hoje, os cheiros da cera Parquetina e do Óleo de Peroba que perfumaram aquele ambiente. Um espaço que aos poucos foi-se enchendo de sons e de histórias. O primeiro deles com a música “Mamãe”, uma composição de David Nasser. Canção que preencheu o lugar de emoção e lágrimas, e fez a estreia da nossa querida vitrola.

Quanta emoção sentimos, no momento em que os primeiros acordes se fizeram ouvir através daquele disco de vinil! Um objeto circular que usara palavras cantadas, para falar do amor de um filho por sua mãe. Este e outros objetos circulares fizeram parte do acervo do meu patrimônio musical. Foram anos colecionando memórias auditivas, até que o meu futuro ficasse prenhe de simbologias.

Por tudo isso, hoje, ao observar novamente a precisão cirúrgica da agulha deslizando sobre o vinil, eu rendo ruidosos aplausos a minha nova vitrola, aos meus novos discos e ergo um brinde às boas lembranças. Além disso, acendo o incenso da saudade para perfumar o ambiente e permito que “as idades da vida continuem a desaguar em mim.”