Reconstruindo Caminhos

Reconstruindo Caminhos
Escrevo porque chove saudades no terreno das minhas lembranças e na escrita eu deságuo as minhas urgências, curo velhas feridas e engano o relógio das horas trazendo o passado para brincar de aqui e agora... Costumo dizer que no calçadão da minha memória há sempre uma saudade de prontidão à espreita de que a linguagem da emoção faça barulho dentro de mim e que, nessa hora, o sal das minhas lágrimas aumente o brilho do meu olhar e uma inquietação ponha em desalinho o baú de onde emergem as minhas lembranças, para que eu possa, finalmente, render-me à folha de papel em branco...

junho 25, 2020

Preconceito - Qual a Cor da sua Alma?





Qual a Cor da sua Alma?


Esta é a pergunta que eu sempre faço, quando o assunto é  Preconceito. Todavia, foram necessários anos de observação sobre o comportamento humano, para que eu mesma pudesse responder a esta indagação. E um dos motivos eu relato agora.

No dia 15 de junho deste ano, Patrick Hutchinson, um homem negro, participava de uma manifestação antirracista, em Londres, quando percebeu que um homem branco estava sendo esmagado e espancado. Logo, Patrick com a ajuda dos seus amigos negros, colocou o homem sobre os seus ombros e levou-o para um lugar seguro. Ao ser questionado sobre o porquê do seu comportamento, ele afirmou:

- “ Eu não pensava em nada, apenas que tinha um ser humano no chão”. E, acrescentou: - “ Não conseguia pensar em nada, naquele momento, a não ser salvá-lo”. “Estou salvando o homem que estava a ponto de ser esmagado e espancado. Também estou salvando esses jovens de serem condenados à prisão perpétua”.

Diante desta resposta, eu faço outra pergunta:

- Quantos de nós, “ brancos e bem-nascidos", teríamos nos comportado como Patrick Hutchinson?

Afinal, naquele momento, não havia evidência de que o homem branco estivesse lutando a favor dos negros. Pelo contrário! Segundo a reportagem do site: terra.com.br, algumas pessoas chegaram a afirmar que o homem que Patrick Hutchison carregava sobre os ombros, era membro da extrema direita. Ou seja, um inimigo em potencial naquela manifestação.

Depois do que foi exposto aqui, e tomando como base anos de observação sobre o comportamento humano, eu não teria outra resposta para a pergunta sobre a cor da minha alma, senão esta:

- Homens não têm pele. Eles se vestem pelas almas. 


Existem almas que tocam o nosso coração, por sua grandeza e sensibilidade; há outras que provocam a repulsa do nosso olhar perante à pequenez das suas atitudes e do seu caráter. 

E, você! Qual a cor da sua alma?

PS: O autor da foto é Dylan Martinez, da Reuters.

junho 17, 2020

Uma Carta para Deus - Um Pedido de Absolvição















Querido Deus,


Chove lá fora e aqui dentro também. Tenho uma consciência torturada e um coração que sangra em lágrimas pelos meus erros. Rezo para acalmar-me, mas as contas do Rosário já não são suficientes para redimir-me. Então, para expiar a minha culpa, coloco a multidão dos meus pecados diante de ti, e te peço a absolvição.

Senhor, eu pecador, confesso: quando nasci me foram apresentadas páginas em branco, para que nelas eu escrevesse a história da minha vida. Não fui capaz! Maculei a brancura das pautas e incorri em desonra quando professei o meu credo. Não, não fui cristã! Não honrei a morte do teu filho! Ele, sim, cobriu os meus pecados com o sacrifício da cruz e, em troca, pediu-me apenas o amor e compaixão pelos meus semelhantes. No entanto, eu falhei, tropecei e caí naquele que considero o mais importante de todos os mandamentos: fazer ao outro aquilo que deseja para si mesmo. Não, eu não fiz! Nem sequer tentei com afinco. Ao primeiro sinal de invasão de privacidade, no terreno dos meus quereres: de poder; de honra, de glória; de ambição por riquezas e bens materiais, eu desisti. Renunciei à ideia de ser boa, de amar, ser compassiva e misericordiosa quando percebi, também, que os holofotes da fama não estariam mais sobre mim. E, em nome disso, cometi erros atrozes quando pratiquei o lado avesso da bondade, da compreensão, do perdão e da humanidade da qual eu estava imbuída. Fui inimiga feroz daqueles que não comungaram do mesmo ideal que eu e de quem se recusou a rezar por minha cartilha. Fechei a cortina dos meus olhos para quem era diferente de mim em cor, raça, credo e etnia. Investi-me no cargo de juíza e a partir daí, fui a mais cruel das inquisidoras. Dedo em riste, julguei e condenei a quem ousou discordar de mim, classificando-os de inimigos da Pátria. Exilei-os para não ouvir o clamor das suas vozes. Foram tantos: judeus; negros; LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais); portadores de necessidades especiais; quem estava acima do peso e tantos outros, excluídos porque professaram uma ideologia diferente da minha.

Por isso, agora, nesse intervalo de tempo e de isolamento social, em que eu sou obrigada a reconhecer o bulício da vaidade; da cobiça; da ganância; da sede de poder a qualquer preço e de tantas outras mazelas e injustiças que pratiquei ao longo da minha vida, eu venho, por meio desta carta, pedir à absolvição dos meus pecados, invocando o nome e a súplica do teu filho, Jesus:

- “Pai, perdoai-os porque eles não sabem o que fazem”.

Ainda que eu esteja arrependida, com a consciência torturada e um coração que sangra em lágrimas pelos meus erros, eu faço uma ressalva:

- Sim, nós sabemos Jesus! Nunca somos inocentes!

Ainda assim, eu te peço perdão. Meu Deus, pela multidão dos meus erros! Perdoa-me, setenta vezes sete! Quem sabe, um pouco mais!?

junho 02, 2020

A Sala do Piano


















Uma fatia do tempo traz-me de volta ao passado. Um mundo em silêncio dá lugar ao som de um instrumento musical que acorda as minhas lembranças. Uma saudade habita-me! Ela é a Rua Vila Nova da Rainha 389. Mais que um endereço, uma história da qual tornei-me guardiã.

Quando eu ouvi, pela primeira vez, Isabella Perazzo tocar a música “Tristesse” do compositor Frédéric Chopin, senti-me aquecida. Naquele dia, as teclas do piano despertaram memórias de um tempo sem luto, nem pandemia. Os primeiros acordes anunciaram que a saudade daria plantão. Então, percorri com delicadeza, em passos de feltro, todo o chão da minha casa, explorando cada lugar dessa pátria de intimidades. Lá, encontrei a sala do piano. Um recanto para o deleite, para ouvir Chopin, Mozart, Beethoven, Schubert, Debussy, entre outros. Eu era criança, naquela época, com a idade entre sete e oito anos. À noite, logo após o jantar, dirigia-me à sala do piano e ficava horas a fio ouvindo, embevecida, a minha tia Laíce dedilhar as suas canções preferidas. Às vezes, a música era tão triste e melancólica que o meu corpo doía de falta, de ausência. A inocência da infância não sabia atribuir um nome àquele sofrimento. Ainda assim, a sala do piano era o meu lugar preferido da casa. Gostava de percorrer as teclas daquele instrumento musical e delas tirar algum som. Mas, ao contrário de todas as minhas tias e de minha mãe, eu não nasci com o dom para a música. Na idade adulta até tentei, porém fui incapaz de ler uma partitura sequer. Quando os primeiros acordes eram tocados e a canção invadia a sala, chovia em meus olhos e a pele arrepiava. Nunca consegui dominar esta emoção! Talvez, pelo fato de meu pai, em um momento de crise financeira, ter se desfeito do piano e com este ter ido embora tanto o meu sonho de torna-me pianista, quanto a liturgia de um momento que para mim era sagrado.

Por isso, senti-me aquecida quando escutei Isabella Perazzo tocar a música “Tristesse”. Ouví-la, quebrou a rotina dos meus dias de quarentena e transportou-me para um lugar mágico, sem palavras, nem despedidas...A sala do piano.