Reconstruindo Caminhos

Reconstruindo Caminhos
Escrevo porque chove saudades no terreno das minhas lembranças e na escrita eu deságuo as minhas urgências, curo velhas feridas e engano o relógio das horas trazendo o passado para brincar de aqui e agora... Costumo dizer que no calçadão da minha memória há sempre uma saudade de prontidão à espreita de que a linguagem da emoção faça barulho dentro de mim e que, nessa hora, o sal das minhas lágrimas aumente o brilho do meu olhar e uma inquietação ponha em desalinho o baú de onde emergem as minhas lembranças, para que eu possa, finalmente, render-me à folha de papel em branco...

junho 17, 2020

Uma Carta para Deus - Um Pedido de Absolvição















Querido Deus,


Chove lá fora e aqui dentro também. Tenho uma consciência torturada e um coração que sangra em lágrimas pelos meus erros. Rezo para acalmar-me, mas as contas do Rosário já não são suficientes para redimir-me. Então, para expiar a minha culpa, coloco a multidão dos meus pecados diante de ti, e te peço a absolvição.

Senhor, eu pecador, confesso: quando nasci me foram apresentadas páginas em branco, para que nelas eu escrevesse a história da minha vida. Não fui capaz! Maculei a brancura das pautas e incorri em desonra quando professei o meu credo. Não, não fui cristã! Não honrei a morte do teu filho! Ele, sim, cobriu os meus pecados com o sacrifício da cruz e, em troca, pediu-me apenas o amor e compaixão pelos meus semelhantes. No entanto, eu falhei, tropecei e caí naquele que considero o mais importante de todos os mandamentos: fazer ao outro aquilo que deseja para si mesmo. Não, eu não fiz! Nem sequer tentei com afinco. Ao primeiro sinal de invasão de privacidade, no terreno dos meus quereres: de poder; de honra, de glória; de ambição por riquezas e bens materiais, eu desisti. Renunciei à ideia de ser boa, de amar, ser compassiva e misericordiosa quando percebi, também, que os holofotes da fama não estariam mais sobre mim. E, em nome disso, cometi erros atrozes quando pratiquei o lado avesso da bondade, da compreensão, do perdão e da humanidade da qual eu estava imbuída. Fui inimiga feroz daqueles que não comungaram do mesmo ideal que eu e de quem se recusou a rezar por minha cartilha. Fechei a cortina dos meus olhos para quem era diferente de mim em cor, raça, credo e etnia. Investi-me no cargo de juíza e a partir daí, fui a mais cruel das inquisidoras. Dedo em riste, julguei e condenei a quem ousou discordar de mim, classificando-os de inimigos da Pátria. Exilei-os para não ouvir o clamor das suas vozes. Foram tantos: judeus; negros; LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais); portadores de necessidades especiais; quem estava acima do peso e tantos outros, excluídos porque professaram uma ideologia diferente da minha.

Por isso, agora, nesse intervalo de tempo e de isolamento social, em que eu sou obrigada a reconhecer o bulício da vaidade; da cobiça; da ganância; da sede de poder a qualquer preço e de tantas outras mazelas e injustiças que pratiquei ao longo da minha vida, eu venho, por meio desta carta, pedir à absolvição dos meus pecados, invocando o nome e a súplica do teu filho, Jesus:

- “Pai, perdoai-os porque eles não sabem o que fazem”.

Ainda que eu esteja arrependida, com a consciência torturada e um coração que sangra em lágrimas pelos meus erros, eu faço uma ressalva:

- Sim, nós sabemos Jesus! Nunca somos inocentes!

Ainda assim, eu te peço perdão. Meu Deus, pela multidão dos meus erros! Perdoa-me, setenta vezes sete! Quem sabe, um pouco mais!?