Em “tempos líquidos” ressignificar é verbo de pouco uso. Significa reinventar-se, reconstruir, refazer caminhos. Requer paciência, esforço, sacrifícios... Mudanças internas. Não é fácil! Nos perdemos na azáfama diária e nos primeiros obstáculos desistimos. Ainda assim, todos os dias a vida nos dá a oportunidade de ressignificá-la. Porém, exige de nós olhos e ouvidos atentos e uma vontade férrea para mudarmos o curso da nossa existência. E foi isto que eu pude comprovar, no início deste mês de novembro, ao escutar a história de Elizabeth.
A minha antiga secretária do lar precisou ausentar-se e eu fui a busca de uma nova ajudante para os serviços domésticos. Uma amiga apresentou-me a Elizabeth. Ela é tímida e recatada, embora tenha olhos que sorriem. Parece uma criança, apesar da sua juventude estar prestes a acabar.
Acertamos o dia da faxina e, de pronto, ela foi avisando que demoraria nas tarefas, porque desejava fazer o serviço sem pressa para que ficasse a contento. Pediu-me que não a chamasse para almoçar. Na hora pensei: - esta criatura vai entrar pela noite (de fato, entrou) e eu vou perder todo o meu dia para ter a casa limpa.
Que ledo engano! Elizabeth, a mulher/guerreira que se revelaria ao término das atividades doméstica não só varreu, tirou o pó dos móveis e lavou a casa, como também, encheu os meus olhos de água limpa, para que eu pudesse enxergar a vida por outro ângulo.
Acanhada, até na hora de cobrar pelo serviço feito, com tanto esmero, ela parecia pedir desculpa por existir. Foi então que, após o pagamento, enternecida, eu lhe dei um abraço e agradeci-lhe por ter cuidado tão bem do meu lar.
Naquele momento, a minha nova ajudante, emocionada, discorreu sobre suas dores e carências. Falou sobre a sua origem, a respeito da pobreza da sua família e de como dividiam um ovo (quando tinha) para sete pessoas. Disse-me que a família comia apenas uma vez ao dia, por isso ela não tinha pressa para fazer a refeição. Comentou também sobre o trabalho com a enxada, do calo nas mãos infantis e de como era forçada a engolir um alimento que a repugnava, para não morrer por inanição. Contou-me dos dias em que ela e os irmãos eram obrigados a dormir cedo, para que a mãe não visse nos olhos deles a “cara de fome” e de quanta água com sal beberam para acalmar o barulho dos seus estômagos vazios!
Estas e muitas outras histórias foram contadas, timidamente, por Elizabeth. Todavia, em nenhum momento eu senti pena daquela mulher, porque não havia vestígios de vitimização na vida contada por ela. Havia sim, um apaziguamento sereno, ordeiro entre ela e a vida que se impôs.
Ao final, lembrei-me de que em uma das mensagens que ela me enviara pelo WhatsApp, chamou-me a atenção o emprego de um português correto que não condizia com a sua realidade... E foi ainda durante o nosso colóquio que eu fiquei sabendo que a nova secretária estudara em escola pública, fizera vestibular para Direito e fora aprovada. Todavia, não pudera frequentar as aulas porque trabalhava fazendo faxinas, durante os sete dias da semana, para pagar as suas contas.
Depois de tudo que foi dito, fiquei surpresa ao perceber uma existência de tanta força! A trajetória dessa mulher/guerreira tocou-me a alma e o coração de maneira indizível. Por esta razão, em nossa despedida, olhei bem dentro dos seus olhos e disse-lhe:
- Elizabeth, que orgulho eu tenho de ter lhe conhecido! Obrigada, por dar uso ao verbo ressignificar com tanta coragem e valentia. O mundo sem você seria mais triste!
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