Reconstruindo Caminhos

Reconstruindo Caminhos
Escrevo porque chove saudades no terreno das minhas lembranças e na escrita eu deságuo as minhas urgências, curo velhas feridas e engano o relógio das horas trazendo o passado para brincar de aqui e agora... Costumo dizer que no calçadão da minha memória há sempre uma saudade de prontidão à espreita de que a linguagem da emoção faça barulho dentro de mim e que, nessa hora, o sal das minhas lágrimas aumente o brilho do meu olhar e uma inquietação ponha em desalinho o baú de onde emergem as minhas lembranças, para que eu possa, finalmente, render-me à folha de papel em branco...

julho 02, 2025

Tempo de Travessia e de Dor








Senhor, eu não estou pronta, mas continuo aqui em pleno inverno da alma clamando pela Tua Presença. Um “tsunami” devastou o terreno dos meus afetos e a árvore da vida que servia de abrigo para o pássaro descansar, clama por misericórdia. O ninho está vazio e o ventre estéril ousa perguntar, ainda que conheça a resposta:

 - Senhor, por que, eu?

- E, por que não!? O Senhor me responde.

Desolada, eu busco alívio nas teclas do computador... Indecisa, cato letras para semeadura, embora saiba que o solo está impróprio para o cultivo, apesar de úmido. É tempo de travessia e de dor. É tempo de chorar.  Então, eu escrevo e choro.

Escrevo porque se as minhas mãos são capazes de gerar palavras de vida, morte, amor e saudades, também serão capazes de suportar o silêncio e o deserto, especialmente, quando eu entendo que morrer é verbo sem tempo que não ameniza a dor. Por esta razão, lembrando do que disse a escritora Hilda Lucas:"Escrever sempre me devolveu o rumo, o centro, a sanidade, a paz, a posse da minha história”, eu continuo chorando e catando letras em terreno infértil e pedregoso.

Neste momento, estou em busca de mim. Quero me reinventar, preciso me reerguer. Por isso, eu clamo pela Tua Presença e teço palavras como quem tece uma manta, para me aquecer no inverno da alma.  Necessito redescobrir quem eu era antes de ser ventre, pois o ninho vazio expõe a minha fragilidade e cobra o preço das escolhas do passado. Quem eu sou agora, quando o primogênito bateu as asas e saiu de casa para não mais voltar? Justo agora, no entardecer dos meus dias, quando o ventre está estéril e uma nova semeadura não é mais possível.  Preciso apaziguar a minha alma para viver este tempo de silêncio, saudade e solidão. Se faz necessário, neste instante, viver o deserto que se aproxima e, ainda assim, em mãos postas dizer:

- Meu Deus, em tudo eu vos dou Graças, porque eu tudo posso Naquele que me fortalece. Gratidão, pelo sofrimento! É ele quem me ensina a ser uma pessoa melhor e me faz concordar com a Tua resposta, neste tempo de travessia e de dor.

- E, por que, não eu!?

maio 19, 2025

A Dor Silenciosa da Casa de Boneca

 








Dani,

As memórias felizes nos salvam, quando os sonhos de adulto não encontram abrigo e a realidade nua e crua bate à porta do nosso lar. A casa de boneca está vazia e uma dor silenciosa reclama a sua ausência.

Hoje, um dia após a sua partida, uma lembrança aflorou em meio a um turbilhão de pensamentos e eu me deparei com o silêncio de um quarto de hospital. Estava sozinha! Nele, ainda sob o efeito da anestesia, eu olhava para o teto sem saber ao certo o que estava fazendo naquele lugar, quando uma enfermeira me comunica que vai trazer um bebê para eu alimentar. Sentei-me em uma poltrona e esperei. Momentos depois, ela entrava apressada, e colocava você em meus braços. Até aquele minuto, eu nunca havia pego um recém-nascido no colo, porque fui criada entre adultos, mas o instinto materno sabedor da importância daquele instante fez com que eu, desajeitadamente, tentasse ajustá-la ao meu seio para que você pudesse receber a sua primeira alimentação.

Naquele dia 06/ 08/1977, em meio ao arrepio da pele e das minhas lágrimas que caíam sobre o seu rosto, eu fiz uma prece: “Meu Deus, a partir de hoje, coloca sobre os meus ombros todo o sofrimento que vier para esta criança!”

Passaram-se décadas para que eu pudesse entender que a minha prece não fora atendida. E não foi por falta de merecimento nem seu, nem meu. Cada um de nós, ao nascer, independentemente, da cor, raça, religião, ideologia ou status social traz em si a fagulha divina, a presença de Deus tatuada em nosso coração e o mistério da Divindade correndo em nossas veias. Nascemos nus e voltamos nus em um corpo que aos poucos vai se transformando em cinzas. Faz parte do Plano Divino, porque em tudo há um propósito! Não nos cabe contestar.

Por isso, nesta manhã de domingo, quando a dor silenciosa da casa de boneca me visita, eu abro todas as portas que havia fechado quando fui velar e assistir à cremação do seu corpo no Cemitério do Parque das Acácias e deixo que o vazio e o silêncio me preencham para viver o luto da sua ausência. A casa de boneca (a qual você costumava chamar assim, por conta da organização e o cheirinho de lavanda no ar), hoje, está um caos: cadeira de rodas, cadeira de banho, cama hospitalar, litros de oxigênio, soros pendurados em suportes, caixas e mais caixas de medicamentos, agulhas, gases, algodão, prateleiras abarrotadas de lençóis, camisolas, toalhas, material de higiene, cremes e pomadas se espalham pelos cômodos... E o nosso perfume? Sim, digo nosso, porque nesta reta final (que durou quatro meses) eu, estrategicamente, escolhi o mesmo perfume para nós duas, para que a minha ausência, ainda que por breves momentos, não fosse sentida... Você estava em mim e eu em você.

E agora, como eu fico? A mesa está vazia, o quarto está vazio e a casa silenciosa. Em breve, a casa de boneca voltará a ser como que era antes. A cama e os medicamentos, entre outros objetos serão devolvidos. Mas, quem me devolverá você, senão as memórias felizes!?