Escrevo porque chove saudades no terreno das minhas lembranças e na escrita eu deságuo as minhas urgências, curo velhas feridas e engano o relógio das horas trazendo o passado para brincar de aqui e agora... Costumo dizer que no calçadão da minha memória há sempre uma saudade de prontidão à espreita de que a linguagem da emoção faça barulho dentro de mim e que, nessa hora, o sal das minhas lágrimas aumente o brilho do meu olhar e uma inquietação ponha em desalinho o baú de onde emergem as minhas lembranças, para que eu possa, finalmente, render-me à folha de papel em branco...
1964/1985. Houve um golpe. Havia armas. Mas, dentro delas, tremulava a bandeira da paixão e do amor. Tempos difíceis. Tempos de gaveta: de acordar e guardar sonhos...
O país estava em guerra. Uma guerra surda onde só se ouviam as vozes da ditadura. Ela, ainda menina, também travava consigo outra luta, onde se fazia escutar, apenas, o som descompassado do seu coração. Era um tum-tum-tum louco, desembestado, descendo a ladeira das suas veias, num vaivém sem fim, que só acabava quando o objeto do seu amor lhe consumia as carnes e acalmava o seu desejo. Era outro país dentro dela, uma pátria de intimidades que se sobrepunha a guerra lá fora... Ela acordara em si as vozes do amor e da paixão. Tudo ficava menor diante dessa descoberta, embora lhe consumisse, em chamas, a consciência do sangue derramado pela Pátria Mãe Gentil.
E, agora, 50 anos depois, ela continua sem entender nada dessa guerra que, entre mortos e feridos, restaram as chagas de uma dor que não passa e a solidão de um luto permanente.
O Brasil, meu amigo, continua de luto pelos filhos que não voltaram. E, eu, refém de um passado que anda sempre pelos vãos da memória, digo-lhe isto: “ só pra dizer que não falei das flores”. Flores mortas como as do outono, mas flores, também, da primavera que nos faz sempre voltar inteiros e continuar na luta pela paz e pela justiça social.
Às vezes, ela chega de mansinho, suavemente, provocando a melancolia que favorece o devaneio e a meditação. Outras, feito um trovão, com os seus ecos tocando uma melodia em tom maior. São gotas em abundância: arrebentação e espraiamento nas margens das minhas saudades esquecidas... Quando ela chega assim, sou toda mulherzinha. Ponho à mesa e forro a cama. Faz-se inverno dentro de mim!
A chuva traz de volta a escuridão de algumas noites... Acariciada pelo olhar, ela reclama
o aconchego da lareira. Então, eu choro a tua ausência e, num voo cego e solitário, parto pelo mistério do breu.
O telefone toca e o silêncio é invadido pela música "As Time Goes By", trilha sonora do filme "Casablanca." Do outro lado da linha, um terrorista emocional desafia as horas que passam e nada diz, nada fala encastelado em seu silêncio.
Chove lá fora. Da janela do meu apartamento vejo o mar recebendo as lágrimas do céu. Aqui dentro, também chove: lágrimas de saudades! Mas, de onde elas vêm? Procuro no arquivo das minhas lembranças e não encontro nada, nem ninguém que as mereça. Tenho olhos de saudade e uma dor agônica quando percebo o entardecer dos meus dias e vejo o quanto me entristece esses amores vãos e esse vaivém que não arrepia a pele da alma. Tenho olhos de saudade, duas páginas em branco sobre algo que nunca vivi: a plenitude do amor... Não sei lidar com um afeto que não se expõe e que silencia quando a minha fome é de palavras e de carinho.
Quero alguém que diga a que veio, pois como um andarilho profissional já caminhei por países e cidades distantes à procura deste sentimento e não o encontrei, a não ser no mar profundo do meu querer. E é dele que emerge o desejo de viver com essa pessoa que eu tanto espero e que fica silente, enquanto eu roubo dos dias a fantasia de um possível encontro e deixo guardada na janela dos meus olhos a imagem desse amor crepuscular.
O telefone toca, novamente, e eu, que habito o mundo dos sonhos sem teto ouso dizer:
- Meu amor, por onde quer que você ande, venha, a porta está aberta. Mas, venha sem medo e sem receio dessa entrega que só os corajosos e bem- resolvidos são capazes. O pó do tempo já deve ter-lhe ensinado que a vaidade e o orgulho com que exibe os seus troféus e as suas conquistas amorosas de nada mais lhe servem nessa época em que a solidão cobre o mundo...
Sei que somos todos vítimas da vontade de roçar nos amores vãos e suas bocas carmesins, contudo, para além da embriaguez do momento existe o êxtase de saber-se amado por inteiro... E, é em nome desse sentimento que eu confesso: ando com os olhos cansados de sentir saudades. Eles saem por aí percorrendo ruas, esquinas e avenidas à medida que o meu corpo suado e exausto pede arrego a essa busca frenética para recuperar o tempo perdido...
Não me deixe esperar mais! Por favor, fale! Minha alma, minha primeira pele, aquela que arrepia por dentro, espera por você desde sempre. Venha!
Há dias assim, como hoje, em que eu me sinto sufocada...
São dias escarlates onde tudo em mim é desejo e provocação. O tinteiro sobre a mesa se deixa derramar sobre a folha de papel em branco e o vermelho rubro das minhas letras vai deixando entrever o tango argentino da minha paixão.
Dentro de mim, negociando prazos e me consumindo lentamente, alguém pede passagem... Liberdade! Reprimo porque sei dos danos e das convenções, mas diante da insistência solto-a e ela ganha às ruas num misto de prazer, alegria e gozo. A fera está solta! Sou outra mulher...
Um par de sapatos vermelho e uma taça de vinho na mão ensinam-me a engolir a noite. Quero beber a tua ausência, saciar o meu desejo e depois... Ah! Depois eu canto ao teu ouvido: “ se acaso me quiseres, sou dessas mulheres, que só dizem sim”...
É carnaval! De longe, de muito longe, ouço alguns acordes de marchinhas antigas: “Quanto riso! Oh, quanta alegria!" Somos mais de mil palhaços a chorar a morte dos nossos sonhos na avenida.
A fome, o desemprego, o abandono e a dor vestem as suas fantasias e seguem pelas ruas cantando o samba enredo de um povo, enquanto, nas alas palacianas, o bloco da saudade providencia pão e circo, para que o rei momo continue a brilhar.
São três dias de entorpecimento... Pobre nação! Arlequins e Pierrôs tristes e sem esperança desfilam pelas vias com a máscara negra da desilusão, ao som de “mamãe eu quero mamar”, música executada pelos rufiões do povo... Mas, de repente, eis que chega a “quarta-feira ingrata, tão depressa, só pra contrariar”. Já não há leite para tantos! É hora de colocar o bloco da saudade nas ruas. O período eleitoral está chegando. Que venham às urnas!