Reconstruindo Caminhos

Reconstruindo Caminhos
Escrevo porque chove saudades no terreno das minhas lembranças e na escrita eu deságuo as minhas urgências, curo velhas feridas e engano o relógio das horas trazendo o passado para brincar de aqui e agora... Costumo dizer que no calçadão da minha memória há sempre uma saudade de prontidão à espreita de que a linguagem da emoção faça barulho dentro de mim e que, nessa hora, o sal das minhas lágrimas aumente o brilho do meu olhar e uma inquietação ponha em desalinho o baú de onde emergem as minhas lembranças, para que eu possa, finalmente, render-me à folha de papel em branco...

julho 01, 2020

Uma Carta para Meu Neto













Querido Gibinha

Vovó sempre gostou de escrever e receber cartas. 
Quando era jovem contava as horas e gastava os dias imaginando o momento em que o carteiro entregaria a tão desejada missiva. 
Vivia uma saudade antecipada de palavras que iria pôr fim ao sofrimento da espera.
Porém, hoje, o motivo desta carta é outro.

Nas asas do amanhã incerto repousam desejos, atitudes, canções de ninar e histórias que eu ainda gostaria de contar para você. 
Não sei se terei tempo! Então, escrevo. Antecipo a saudade e o sofrimento da sua espera, falando sobre o meu amor.

Um neto é um mundo com tempo marcado! Daí a urgência. 

Quando você nasceu eu tinha sessenta e nove anos, mas não contava os dias pelo calendário gregoriano. 
Quando perguntavam a minha idade, a resposta era imediata: não tenho idade, tenho sonhos! E agora Gibinha, que cheguei aos setenta, percebo que tenho mais idade do que sonhos.

- O que mudou em tão poucos meses, você deve estar se perguntando? Eu respondo:

- A percepção do tempo como fator de dias transcorridos. Uma realidade que eu não posso mais ignorar.

Não dá para enganar a ampulheta do tempo.
A areia fina passa indiferente à minha vontade e à quantidade dos meus sonhos.
Em vista disso, o meu coração desveste-se de imortalidade e capitula. 
A verdade é que a Covid-19 já roubou três meses e duas semanas de nossa convivência. 

Não posso mais lhe dar banho, nem a sua sopinha. O carrinho que comprei para passear com você, quedou-se esquecido, diante da proibição: - fique em casa! Os fins de semana que passávamos juntos fazendo piscina à beira-mar, não são mais permitidos.

O que dizer das canções de ninar e do balanço na rede? E dos nossos vídeos de Borboletinha? E das nossas brincadeiras com o cavalinho Pocotó? 
Tudo isso, agora, faz parte do nosso passado. O presente é feito de incertezas e o futuro tem data de validade.

Tenho setenta anos! Com muita sorte ainda poderei acompanhá-lo em seus primeiros dias de aula na escola e na natação.
Poderei também ensinar-lhe as primeiras letras do alfabeto e ajudá-lo a desenvolver o gosto pela leitura... 
Com fé em Deus e alguns cuidados teremos mais uns anos juntos pela frente. 
Todavia, não estarei aqui nos tempos difíceis da sua adolescência, nem poderei ajudá-lo com as suas dúvidas, tampouco nas escolhas inevitáveis que terá de fazer, na juventude: 

- Qual profissão escolher? Faço esse ou aquele curso? Como me manter sereno perante às tentações? Qual o melhor caminho a seguir? Como conviver com a emoção do primeiro amor e a insegurança da primeira vez? Como lidar com a dor e a saudade?

Pois é, Gibinha! Um neto é um mundo com tempo marcado. Não posso mudar isto.
É certo que não poderei acompanhar todos os seus passos, nem responder às suas inquietações.
Entretanto, o tempo, adverte-me: - a vida é aqui e agora! Por isso, esta carta.
Não quero que você gaste os seus dias esperando por palavras, atitudes e conselhos que, por força das circunstâncias, não virão.

Então, aproveito o momento e deixo registrado, nesta carta, todo o meu amor e a impossibilidade de vivê-lo plenamente...

Amar você, Gibinha, foi a melhor coisa que me aconteceu.

2 comentários:

chica disse...

Julieta, que emocionante e linda carta ao Gibinha, teu neto amado. Estamos todos assim...Saudades muitas, muitas mesmo desses queridos nossos e que há tanto tempo não os podemos ter,abraçar, brincar de perto...Aqui falo pelo celular, vejo pelos vídeos e telefone.Mas não é o mesmo! Por isso, te entendo muito bem! Que passe logo e que nossos dias normais possam ser de alegrias, brincadeiras com eles e tantas coisas mais. Fica tranquila, muiiiito ainda vais ver. Basta esse danado vírus pegar suas "malas e se mandar embora pra sempre! ...........

Interrupção...

Adivinha o que aconteceu? Queimei no forno enquanto aqui estava, duas formas de abobrinhas em lascas,bem temperadinhas...Viraram carvão! É o que dá ler amigos nos intervalos da cozinha...

beijos, chica


beijos, chica

Nalicia Inez disse...

Muito emocionante esse seu texto...Parabéns!!Viva e curta o seu momento presente com seu neto..