Reconstruindo Caminhos

Reconstruindo Caminhos
Escrevo porque chove saudades no terreno das minhas lembranças e na escrita eu deságuo as minhas urgências, curo velhas feridas e engano o relógio das horas trazendo o passado para brincar de aqui e agora... Costumo dizer que no calçadão da minha memória há sempre uma saudade de prontidão à espreita de que a linguagem da emoção faça barulho dentro de mim e que, nessa hora, o sal das minhas lágrimas aumente o brilho do meu olhar e uma inquietação ponha em desalinho o baú de onde emergem as minhas lembranças, para que eu possa, finalmente, render-me à folha de papel em branco...

novembro 21, 2024

Ressignificar - A História de Elizabeth



 







Em “tempos líquidos” ressignificar é verbo de pouco uso. Significa reinventar-se, reconstruir, refazer caminhos. Requer paciência, esforço, sacrifícios... Mudanças internas. Não é fácil! Nos perdemos na azáfama diária e nos primeiros obstáculos desistimos. Ainda assim, todos os dias a vida nos dá a oportunidade de ressignificá-la. Porém, exige de nós olhos e ouvidos atentos e uma vontade férrea para mudarmos o curso da nossa existência. E foi isto que eu pude comprovar, no início deste mês de novembro, ao escutar a história de Elizabeth.

A minha antiga secretária do lar precisou ausentar-se e eu fui a busca de uma nova ajudante para os serviços domésticos. Uma amiga apresentou-me a Elizabeth. Ela é tímida e recatada, embora tenha olhos que sorriem. Parece uma criança, apesar da sua juventude estar prestes a acabar.

Acertamos o dia da faxina e, de pronto, ela foi avisando que demoraria nas tarefas, porque desejava fazer o serviço sem pressa para que ficasse a contento. Pediu-me que não a chamasse para almoçar. Na hora pensei: - esta criatura vai entrar pela noite (de fato, entrou) e eu vou perder todo o meu dia para ter a casa limpa.

Que ledo engano! Elizabeth, a mulher/guerreira que se revelaria ao término das atividades doméstica não só varreu, tirou o pó dos móveis e lavou a casa, como também, encheu os meus olhos de água limpa, para que eu pudesse enxergar a vida por outro ângulo.

Acanhada, até na hora de cobrar pelo serviço feito, com tanto esmero, ela parecia pedir desculpa por existir. Foi então que, após o pagamento, enternecida, eu lhe dei um abraço e agradeci-lhe por ter cuidado tão bem do meu lar.

Naquele momento, a minha nova ajudante, emocionada, discorreu sobre suas dores e carências. Falou sobre a sua origem, a respeito da pobreza da sua família e de como dividiam um ovo (quando tinha) para sete pessoas. Disse-me que a família comia apenas uma vez ao dia, por isso ela não tinha pressa para fazer a refeição. Comentou também sobre o trabalho com a enxada, do calo nas mãos infantis e de como era forçada a engolir um alimento que a repugnava, para não morrer por inanição. Contou-me dos dias em que ela e os irmãos eram obrigados a dormir cedo, para que a mãe não visse nos olhos deles a “cara de fome” e de quanta água com sal beberam para acalmar o barulho dos seus estômagos vazios!

Estas e muitas outras histórias foram contadas, timidamente, por Elizabeth. Todavia, em nenhum momento eu senti pena daquela mulher, porque não havia vestígios de vitimização na vida contada por ela. Havia sim, um apaziguamento sereno, ordeiro entre ela e a vida que se impôs.

Ao final, lembrei-me de que em uma das mensagens que ela me enviara pelo WhatsApp, chamou-me a atenção o emprego de um português correto que não condizia com a sua realidade... E foi ainda durante o nosso colóquio que eu fiquei sabendo que a nova secretária estudara em escola pública, fizera vestibular para Direito e fora aprovada. Todavia, não pudera frequentar as aulas porque trabalhava fazendo faxinas, durante os sete dias da semana, para pagar as suas contas.

Depois de tudo que foi dito, fiquei surpresa ao perceber uma existência de tanta força! A trajetória dessa mulher/guerreira tocou-me a alma e o coração de maneira indizível. Por esta razão, em nossa despedida, olhei bem dentro dos seus olhos e disse-lhe:

- Elizabeth, que orgulho eu tenho de ter lhe conhecido! Obrigada, por dar uso ao verbo ressignificar com tanta coragem e valentia. O mundo sem você seria mais triste!







março 18, 2024

Prece ao Anonimato

 






Diante dos nossos olhos desenha-se um horizonte promissor. As redes sociais são um convite para que nós ascendamos ao estrelato visto que milhões de seguidores nos garantem fama, sucesso e dinheiro a partir do momento em que o nosso nome ganha projeção.

O que devemos fazer perante a tamanho desafio?

Como conciliar o orgulho, a vaidade e a presunção – que, às vezes, advém desta nova maneira de estar no mundo - com os substantivos empatia, compaixão e solidariedade que deveriam dar sentido a nossa existência?

Esta é uma escolha difícil, pois em alguns casos, somos obrigados a tomar decisões, em um curto espaço de tempo, que afetarão o nosso destino e o de quem está ao nosso redor. E, neste instante, o predomínio do ego pode ser maior do que o nosso eu mais profundo.

Então, como acomodar na estrutura de um tempo tão limitado a nossa necessidade de estar sob holofotes, de ascender socialmente e os nossos bons propósitos, àqueles que, realmente, dão sentido a nossa existência?

Foi pensando nisto e desejando que o meu ego – àquele que busca os flashes da fama a qualquer preço - não exercesse influência sobre as minhas escolhas que me sobreveio esta prece ao anonimato.

- Senhor, dai-me o anonimato quando o meu ego for maior do que o meu eu mais profundo! Que eu tenha o distanciamento necessário para entender que as minhas escolhas equivocadas vão me distanciar do verdadeiro sentido de estar no mundo!

- Senhor, dai-me o anonimato quando eu estiver na rua e o meu olhar indiferente estimular a invisibilidade do meu semelhante e quando a minha mão se ausentar, sob qualquer circunstância, daquela que está estendida em minha direção!

Senhor, dai-me o anonimato quando movida pelo orgulho, pela vaidade e pela presunção eu não lembrar de que o meu caixão não tem gavetas e de que na lápide todos nos igualamos!

Senhor, dai-me o anonimato quando movida pela ganância eu tentar atropelar o direito do outro, quando movida pela astúcia eu tentar tomar o que não é meu e quando desarvorada eu esquecer de que as pessoas vão e as coisas ficam!

Senhor, ilumina a minha consciência para que ela possa reparar todos os meus erros e dai-me o anonimato sempre que o meu desejo por vingança for maior do que o meu perdão!

Senhor, dai-me o anonimato antes que eu esqueça de que as redes sociais não refletem a luz do meu eu mais profundo e de que sete palmos de terra, um dia, vão dar abrigo ao meu corpo e me conduzir ao esquecimento!

Senhor, dai-me o anonimato! Leva-me ao ostracismo quando a aptidão com as palavras for usada para caluniar, difamar ou cometer injúria contra alguém.

Por fim, dai-me Senhor, o anonimato a partir do momento em que eu me deslumbrar diante dos holofotes da fama e esquecer quem sou, de onde vim e para onde vou
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fevereiro 07, 2024

Sobre a Saudade

 














Naquele dia, o olhar de Gibinha era distante, melancólico e não condizia com o comportamento serelepe que sempre apresentara. Pela primeira vez, aquela criança lidava com a dor da ausência de uma pessoa querida e definia assim a sua tristeza:

- “Saudade é um sentimento que sofre, dói e a pessoa mora longe... É proibido sentir saudades!”

O que dizer, na ocasião, para atenuar a dor do menino que aos quatro anos de idade já experimentara tal sofrimento? Como falar sobre a saudade, explicando-lhe que nem sempre ela dói ou nos deixa triste? Fui vasculhar as gavetas da memória e encontrei motivos de sobra para conversar com ele sobre este sentimento.

A princípio, para melhor compreensão do pequeno, eu falei que, às vezes, a saudade é só a recordação de um prato de feijão com banana, de um sítio cheio de árvores frutíferas ou de uma rede em dias chuvosos. Para exemplificar, recorri às reminiscências da minha infância. Disse-lhe que Aninha, minha amiga daquela época, tinha um hábito diferente do meu. Ela gostava de comer feijão com banana, no almoço, misturados a outros alimentos. E que há pouco tempo, a lembrança deste fato provocou o início de boas saudades. Mencionei também o nome de Maria Elane, outra amiga da meninice, filha de Dona Ziza e de Seu Otacílio. Contei a Gibinha que eles tinham um belo sítio e que ir visitá-los era igual a dia de festa. Além disso, falei que ainda hoje, recordo-me deste lugar e do caminho enladeirado que percorríamos até chegar ao pomar cheio de frutos, próximo ao riacho. Citei o banho nas águas frias daquele pequeno rio, a beleza da queda-d’água, e a pedra grande, em frente à casa, onde eu costumava sentar-me, ao entardecer, para olhar a natureza em volta.

Por último, eu expressei o hábito de deitar-me na rede, em dias chuvosos, para ler gibis, livrinhos de história e o quanto esta recordação me fazia feliz, apesar de sentir saudades. Concluí a explicação dizendo que as boas recordações são como uma colcha de retalhos que aquece o nosso coração, quando sentimos a ausência de algo ou de alguém querido.

Então, qual não foi a minha surpresa quando acreditando que a criança estava mais calma e serena, e ela saiu-me com esta interrogação:

- E o que você me diz da saudade que dói, vovó?

Naquele instante, sem querer mexer em velhas cicatrizes, tampouco abrir o baú das saudades esquecidas e, para melhor entendimento do pequeno, eu respondi:

“- Gibinha, na vida tudo tem seu propósito, seu significado, pois, quando a saudade ainda não é dor, ela é felicidade, alegria e esperança.” É válido pelo momento!