Reconstruindo Caminhos

Reconstruindo Caminhos
Escrevo porque chove saudades no terreno das minhas lembranças e na escrita eu deságuo as minhas urgências, curo velhas feridas e engano o relógio das horas trazendo o passado para brincar de aqui e agora... Costumo dizer que no calçadão da minha memória há sempre uma saudade de prontidão à espreita de que a linguagem da emoção faça barulho dentro de mim e que, nessa hora, o sal das minhas lágrimas aumente o brilho do meu olhar e uma inquietação ponha em desalinho o baú de onde emergem as minhas lembranças, para que eu possa, finalmente, render-me à folha de papel em branco...

fevereiro 29, 2016

Uma Carta para Meu Amor




Meu querido,

Há bastante tempo eu desejo ter uma conversa franca com você, mas discutir a relação é um termo que põe em fuga a maioria dos casais. Por isso, resolvi escrever esta carta. Quem sabe assim, longe do debate acirrado sobre quem tem ou não razão, a terra sedenta das nossas emoções possa ser arada e uma nova sementeira de palavras, gestos e ações se transforme em poesia a se derramar pelo resto dos nossos dias... Como antigamente!

Quando você foi embora fez-se solidão em minha vida, porém a mão do tempo deixou impresso, nos meus dias, uma doce sensação de liberdade. Tive pressa em ser feliz e a partir de então, passei a conjugar os verbos na primeira pessoa do singular: eu quero, eu posso e eu faço. E, fiz! No singular editei a pior parte de mim. Fui Narciso de muitos espelhos! Vivi intensamente a minha alforria. Contudo, agora, quero firmar um contrato na primeira pessoa do plural, esse plural que atende por nós e que é solidário, agregador, companheiro e cúmplice. E, em sendo assim, eu lhe proponho que a partir desse momento sejamos dois em um. Vamos acabar com esse silêncio que nada preenche, com essa dor que vive catalogando más lembranças, para apagar dos arquivos da nossa memória o tempo feliz que vivemos...

No passado, tudo nos caía bem: sonhos, desejos, projetos e passos. Vivíamos carregados de urgências e expectativas. “O meu pedaço no universo era no seu corpo”, e vice-versa. A nossa alegria era ruidosa! Depois, tudo o que restou foi divisão. Foi tecido esgarçado pela troca de farpas. Nada mais era nosso: nem casa, nem sonhos, nem desejos, nem projetos, tampouco os nossos filhos que passaram a serem objetos de alienação parental. O nosso futuro foi saqueado e a nossa felicidade sequestrada em troca de uma liberdade provisória, que só o tempo poderia confirmar... Quem for mais fraco que se renda! Esse era o tom das nossas últimas conversas.

Não, eu não quero mais discutir sobre quem estava com a razão: quem errou mais, quem amou de menos ou quem se deu demais. No amor não há troca, tudo é doação. E doação é o amor em estado puro. Quero apenas lembrar que um dia fomos um casal jovem, bonito e idealista e por livre e espontânea vontade nos escolhemos. Quero lembrar também que a moça encantadora e sexy que agora, por ventura, povoa os seus sonhos, amanhã será uma peça de museu. Que as noites de farras, bebidas e carteados um dia chegam ao fim. Que o dinheiro, o sucesso e o poder que você amealhou ao longo do tempo, a qualquer momento pode trocar de mãos e, quanto ao sexo, nem sempre é possível o milagre da pílula azul, nem outras providências... Nada é permanente, exceto a mudança! E tudo o que posso dizer – de mim - enquanto escrevo, é que eu não quero mais amar você assim com tanta pressa. Eu gosto mesmo é da eternidade, das coisas sólidas e profundas o suficiente para encher os meus dias de alegria, contentamento e esperança.

Nesse momento, a minha memória afetiva passeia por lugares onde o futuro não alcança e uma dança festiva de olhares em movimento percorre caminhos, paisagens, sons, cheiros e lembranças de nós dois... Coleciono saudades! E, você? Por onde andam os seus pensamentos, sonhos, projetos e desejos? Já se deu conta de que sozinho somos bem menos?

Por ora, tudo o que posso resumir neste espaço final de linhas, intercalado por vírgulas e interrogações, é que a “solidão do único cálice de vinho” ainda me queima o corpo e a alma. Não quero mais saber de brigas, nem discussões. Quero amar como antigamente... Pois, todo o resto que em nós excede é orgulho, vaidade e poder. É dominação!



Um comentário:

Frederico Clemente disse...

Belo texto. Parabéns!!!!