Esta cadeira tem mais de 100 anos. Ela pertencia ao meu Pai/Avô, Chico Maria, e estava sob os cuidados de sua filha Marluce. Hoje, depois de um belo e minucioso trabalho de restauração, feito pelo artista plástico, Lairson Beserra, tive a grata surpresa de recebê-la, de presente, pelas mãos da minha sobrinha Rosário. Nela, vou ninar o trineto de Pai/Velho e contar a história a seguir.
A Cadeira e o Olhar
O olhar de uma pessoa reflete a sua alma! Existem almas para todos os gostos! Há os que olham para esta cadeira e veem apenas uma cadeira, outros veem uma história... Uma vida! Vou contar-lhes sobre a minha visão, pois ao revisitar as gavetas da memória, “o tempo, este compositor de destinos,” costura a minha vida com doces lembranças, à medida em que viro páginas e páginas de um passado ainda tão recente. Pois bem, hoje, ao deparar-se com a imagem desta cadeira, o meu olhar transbordou de saudades e as lembranças foram se debulhando, uma a uma. A primeira delas foi a figura do meu pai/avô, Chico Maria, sentado sobre esta peça de mobília tão antiga, contando com mais de um século de existência. Então, lembrei-me de uma frase do escritor Ivan Martins: “o tempo pode ser adiado por fora, mas por dentro ele se instala”. É, o tempo se instala quando nos permitimos acessar recordações, que ficaram preservadas na memória como se fosse um relicário. Nesta hora, fatos, paisagens, lugares e pessoas costuradas dentro da gente contam a história a seguir.
Era um dia de sábado. Dia de tensão! A cadeira de balanço não balançava! Nela, um senhor de aspecto severo e circunspecto contava as cédulas, enquanto o suor lhe escorria pelo rosto. Havia chegado da feira livre, há poucos minutos, e o balaieiro (homem que carregava em um balaio as compras dos fregueses) ainda esperava pelo seu pagamento, quando eu, menina, aos 4/5 anos de idade começava a cantilena:
- Painho, me dá minha mesada! Ao que ele respondia:
- Menina, não vê que eu estou ocupado?
E, eu, insolente, continuava com a minha ladainha, a cada cinco minutos:
- Painho, me dá dois mil reis; - Painho, aumenta a minha mesada, até ver a paciência dele esgotar-se e ouvir em alto e bom som:
- Menina, tá pensando que dinheiro é hemorroida?
Na minha inocência eu não entendia a comparação, mas me calava, pois sabia que a insistência me levaria ao castigo. Horas depois, bem mais calmo e apaziguado com as suas contas, ele me botava no colo e me entregava as tão sonhadas moedas, junto com um cacho de pitombas que ele comprava para mim, e para o meu irmão, Chiquinho. Aí, lá se ia eu a correr atrás do sorveteiro; do homem que vendia algodão doce; do pirulito de chocolate, da venda de seu Nilo e das macaíbas e jatobás da feira livre. Em um instante, acabava-se o meu suado dinheirinho e eu voltava para casa satisfeita com as compras que adoçavam a minha vida e a minha boca. Mas, sim, estávamos falando de uma peça de mobília! À medida que o calendário dos dias ia passando, as palavras do meu pai/avô se faziam habitar em minhas lembranças, de maneira indelével. Sentado na sua indefectível cadeira de balanço ele espreitava o tempo e contava histórias. Como esquecer a sua viagem de João Pessoa à Campina Grande, a pé, enquanto a fome lhe dava um nó nas “tripas”, até encontrar a casa do compadre, no meio do caminho. Ali, lhe foi servido o melhor caldo de um feijão que restou na panela e, que a cozinheira colocou em prato usado e limpo, com um pano de prato tão sujo, que até o pano de chão parecia mais asseado. Como não lembrar das conversas, lições e valores passados como honestidade, honradez, dignidade e, mais que tudo, do cumprimento da palavra empenhada!? Da sua cadeira de balanço eu vi a vida passar em exemplos de solidariedade e de justiça, entre tantos. Vi também o seu ar de preocupação e perplexidade quando o seu filho Chico sofreu um acidente de carro; quando o padre da igreja trouxe notícias do outro filho, Tota, que se meteu em uma encrenca; quando lhe trouxeram a notícia de que seu genro Sebastião havia sido assassinado, ao apartar uma briga numa festa de São João e, quando lhe informaram que a sua neta Eliane havia fugido, para se casar com George, o namorado da juventude. Na mesma cadeira de balanço espreitei as suas negociações com Zé do Sedo, com dona Judite, a famosa doceira de Campina Grande, responsável pelo bolo, doces e salgados do casamento de sua filha Marluce. Ouvi as conversas e os ajustes dos empréstimos aos amigos e a confiança ilimitada de que o fio de bigode valeria mais que uma nota promissória assinada, mesmo contrariando o conselho de sua esposa, que o alertava para um possível calote. No entanto, nada o demovia de suas convicções. Um homem só tem uma palavra, dizia você: - sim ou não!
É, Pai Velho, foram tantas as lições aprendidas sem que uma única palavra fosse emitida, nesse sentido, que o eco das suas palavras ainda ressoa em mim. E, agora, quando olho para esta cadeira, me perco nas saudades e fico parodiando a letra da canção, “Naquela Mesa”, de Sergio Bittencourt: “ nesta cadeira `tá’ faltando ele e a saudade dele ’tá’ doendo em mim.” Ao tempo em que também agradeço por tê-lo por perto na época da minha formação como mulher e cidadã. Obrigada, Meu Pai!
2 comentários:
Li tudo e gostei bastante !
Parabéns pelo seu belo texto e pelo realista resgate de sua infância, por meio desta linda e tão simbólica cadeira.
Abração,
Adaucélia Palitot (Jornalista e sua nova amiga do Espaço Gourmet e R9 Car, lava-jato do Jardim Luna)
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