Reconstruindo Caminhos

Reconstruindo Caminhos
Escrevo porque chove saudades no terreno das minhas lembranças e na escrita eu deságuo as minhas urgências, curo velhas feridas e engano o relógio das horas trazendo o passado para brincar de aqui e agora... Costumo dizer que no calçadão da minha memória há sempre uma saudade de prontidão à espreita de que a linguagem da emoção faça barulho dentro de mim e que, nessa hora, o sal das minhas lágrimas aumente o brilho do meu olhar e uma inquietação ponha em desalinho o baú de onde emergem as minhas lembranças, para que eu possa, finalmente, render-me à folha de papel em branco...

setembro 01, 2020

Álbum de Fotografias


2.Livro, não raro carcelado, de folhas de cartolina, de papel forte, ou de material sintético, próprio para colagem de figurinhas, recortes, etc., ou para guardar fotografias, coleção de selos, discos, gravuras, etc.

No Novo Dicionário Aurélio, versão eletrônica, a definição da palavra “álbum” não está de acordo com a lembrança que eu tenho deste livro.
Para mim, um álbum não guarda só as fotografias, ele guarda também a memória dos meus afetos!
São retalhos de lembranças que contam histórias. São histórias eternizadas na pausa de uma fotografia.

Pois bem, hoje, eu resolvi abrir o meu álbum de memórias. 
E, como bem disse a escritora Eliane Brum: - “ quero ser desabitada, por um momento, para ser habitada pela linguagem que é o outro”.
Nesse instante, pela ordem das imagens, o outro é ela: Mãe Julia.

A mulher que falava com os passarinhos e com as flores que plantava em seu jardim. 
A professora que ensinava mais pelo exemplo do que pelas palavras.

Lembro-me do seu amor pelas aves.
Certa vez, lá pelos idos de 1950, ela comprou um viveiro para abrigar os vários tipos de passarinhos que dela se aproximavam: concriz; canários belgas; pintassilgos; beija-flores e um papagaio.
Era tanta ternura, cuidado e delicadeza no trato com as aves, que por meio destas eu aprendi o verdadeiro sentido do amor e da liberdade.

Pela manhã, bem cedinho, muitos antes do seu desjejum, Mãe Julia já iniciava o bate-papo com os pássaros.
Era a hora de limpar o viveiro, trocar a água e colocar alpiste para os seus filhotes.
O velho concriz era o mais conversador. Bastava ela se aproximar e ele começava a cantoria. 
Os dois tinham uma linguagem própria, uma troca de afetos.
 
Um belo dia, ela começou a se perguntar se era justo manter os pássaros em cativeiro. 
Uma enorme tristeza toldou-lhe o semblante e a partir daí resolveu dar-lhes a liberdade.
Cumpriu o rito matinal e logo em seguida abriu a porta do viveiro para que eles ganhassem a alforria.
Os canários e os pintassilgos se olhavam e se moviam inquietos, mas ninguém ousava sair.
O velho concriz foi o primeiro a ganhar o céu da liberdade. Voou longe por horas a fio.

Porém, ao meio dia e meia, quando toda a família estava sentada à mesa para o almoço, ele adentrou a sala e pousou sobre o ombro de Mãe Julia.
A simbologia do ato nos deixou emocionados. O amor foi mais forte do que a independência que o céu lhe proporcionara.

Minha Mãe era uma Lady, mas não era movida pela afetação. Em qualquer circunstância só se referia ao outro de maneira educada e respeitosa.
Quando solicitava os serviços da secretária do lar, as palavras mágicas: por favor, obrigada e desculpe-me vinham à frente. Discreta e comedida nos gestos não gostava de fofocas nem de intromissões na vida alheia, tampouco de promover discórdias. 
Morou mais de um ano na casa de um dos filhos e sempre que necessitava pegar algo na geladeira, dirigia-se à nora e pedia permissão.

Foi dela que herdei o nome e a consciência ativa de que devo fazer ao outro aquilo que desejo que façam a mim.
Que a minha liberdade termina onde a do outro começa.
Que palavrões não são palavras benditas. 
Que a boa educação abre portas e o conhecimento liberta.

Mãe Julia gostava de cantar A Marselhesa – o Hino Nacional da França. E, de acompanhar Orlando Silva, na canção Rosa.

Acreditava em destino. 
Contava sempre a história de quando era mocinha e recusara a corte dos pretendentes viúvos ou que usavam fardas.
Para seu castigo, segundo ela, casou-se com um viúvo que tinha quatro crianças (ela foi a terceira esposa) e teve um filho militar.
Sorria quando falava sobre isso. E amou os filhos do viúvo: Crueza; Tota; Deusa e Maria como se tivessem saído de suas entranhas.
Gostava de contar da alegria e felicidade de sua filha Creuza quando ela, Mãe Julia, entrou na igreja para casar-se com o seu pai.
E, de como Deusa, sua outra filha, a amava.
Pois, em seu leito de morte pediu-lhe que nunca, em vida, dissesse a ninguém que ela não era sua filha.

Mãe Julia foi feliz, mesmo tendo abdicado do seu sonho de continuar professora, pois os fatos se inverteram. 
Francisco Maria, o viúvo, exigiu que ela deixasse o emprego na escola onde lecionava.
A justificativa para tal propósito era de que ele não queria ser chamado de “o marido da professora”.

Pois então, minha Mãe, esta e outras tantas histórias compõem um pouco da sua biografia. São retalhos de lembranças que a poeira do tempo não conseguiu esgarçar. No meu álbum de fotografias eu eternizo você, para que os seus filhos; netos; bisnetos e trinetos honrem a sua memória.

Um comentário:

chica disse...

Que lindo,Julieta.Tenho certeza que ,de onde tu mãe Julia estiver, te sorri e agradece o carinho por seres assim,feita de coração e educação bem aprendida com ela.

Adorei! beijos, bom te ler,chica

Feliz Setembro!